Passaram três meses daquele dia trágico em que acordámos com as bombas russas a cair sobre a Ucrânia, entrando num novo episódio da invasão perpetrada pela Federação Russa ao país vizinho. Três meses do dia em que a Ucrânia passou a ser o centro da atenção do mundo mediático, das discussões públicas, das conversas de café. Três meses que nos puxaram para a realidade nua e crua de uma invasão em território europeu, soltando fantasmas que assolam um continente que, de tão habituado a viver em paz, já tem entre a grande maioria dos seus cidadãos uma certa ignorância e incompreensão daquilo que fomenta as guerras.
Todos os grandes acontecimentos trágicos nos propõem campos de reflexão que permitem transformações no mundo. Durante estes três meses fomos puxados pelos colarinhos a tentar entender o colapso da União Soviética, a maneira como os países do antigo Pacto de Varsóvia entenderam esse colapso, a mudança do planeamento socialista para o território de mercado capitalista que afetou um largo número de países, as feridas, bem abertas, que tudo isso provocou. Fomos também empurrados para, perante o horrível acontecimento de uma invasão plena de barbaridades, crimes de guerra, imagens chocantes, escolher lados, como se escolher um lado fosse possível, como se escolher um lado fosse um passe para dormirmos melhor com as tragédias dos outros.
Em três meses vivemos mais um desafio que nos é lançado por um momento histórico em que a Europa é virada de pernas para o ar. A solidez das instituições, o avanço tecnológico, a inteligência da diplomacia, a humanidade como lei da convivência, tudo foi colocado em causa nos últimos anos em território europeu. Era bom que perante este desafio tivéssemos a capacidade de entender como caminhar entre os escombros das nossas certezas confrontadas, mas os momentos mais complexos continuam a convocar as figuras mais sinistras, básicas e sorridentes com a sua ignorância, para se constituirem como símbolos de toda a tragédia que nos resta. Quando temos que perceber melhor o que nos está a acontecer, há sempre a tentação de encontrarmos um símbolo que nos impede de lá chegar, apontando o caminho “fácil”. O caminho que não existe para progredir, apenas como fuga.
Passaram três meses e um país está destruído. A Ucrânia já tinha perdido a Crimeia, mantém (e tudo indica manterá) Donetsk e Lubansk a ferro e fogo, vê boa parte do seu país marcado por um ataque que não traz nada de bom, nem sequer a quem desenhou este confronto. Os dirigentes russos voltaram a criar um fosso entre o seu povo e a Europa. Um fosso que parece, também, levar a que os europeus não compreendam totalmente o que se passa para lá dessa barreira - que é física, mas é sobretudo intelectual. Há todo um mundo de desenvolvimentos políticos a envolver as grandes forças asiáticas que se combinam para redesenhar um mapa mundo onde a Europa acabará ainda mais isolada, a falar sozinha, transformada numa espécie de oásis para as classes mais baixas, feira de recreio para as classes mais altas e uma pequena comédia para as classes políticas desses países.
Toda esta realidade não nos toca. É uma conversa à qual não temos acesso - ou pouco, muito pouco. Porque o tratamento que se faz deste conflito se mantém elaborado dentro da lógica do “nós contra os outros”. Porque os argumentos contrários às nossas ideias são simplesmente ridicularizados, sem espaço para uma contra-argumentação pensada e certeira. Porque a ansiedade vai tomando conta do espaço de discussão e, de alguma maneira, todos perdem a razão, porque se desviam do ponto da discussão para viverem do conflito da discussão. Olhamos para o resultado da aparência da nossa conversa e já deixámos de conversar. Passaram três meses e o quadro não vai melhorar. Muitos daqueles que, hoje, exercem a sua ignorância no espaço público são os mesmos que apontavam (e continuarão a apontar o dedo) a quem eles consideram ignorantes. Não conseguindo compreender que é aí mesmo que o nosso “modo de vida” se esgota. A batalha pela compreensão do mundo vai sendo perdida. Uma derrota amarga, se tivermos em consideração que, a esta distância, estávamos no sítio certo para melhor elaborar sobre aquilo que o mundo nos propõe.