“No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite serena.”
Dylan Thomas (Tradução de Fernando Guimarães)
Se nos habituámos à ideia de que a história é um trabalho dos vencedores, não podemos nunca esquecer que a mesma história tem um outro lado, a memória dos resistentes. Miguel Carvalho expõe no seu Quando Portugal Ardeu (Oficina do Livro, 2017) a responsabilidade de um trabalho jornalístico que encontra nesse outro lado da história um caminho a fazer. Para lá de questionar a unanimidade sobre ideias que fazem, hoje em dia, quase parte de um modo de ser português, o autor leva-nos a uma viagem convulsiva sobre os meandros onde se articulou a construção da democracia portuguesa no pós-25 de Novembro de 1975.
A investigação de Miguel Carvalho baseia-se em centenas de documentos, entrevistas e testemunhos de parte dos envolvidos na rede bombista que assolou o país nos primeiros anos da democracia. Parte da morte de João Arruda, alvejado pela PIDE a 25 de Abril de 1974 e leva-nos até ao assassinato de Joaquim Ferreira Torres em Agosto de 1979. Pelo meio, encontramos relatos dos operacionais da rede bombista, declarações dos comandantes e líderes desta mesma rede, documentação que denuncia a origem do dinheiro disponibilizado para as operações. Ao mesmo tempo, vamos cruzando parte dessas informações com as campanhas de contra-informação criadas através da imprensa nacional para lançar uma espécie de cortina de fumo sobre a realidade dos acontecimentos.
A manipulação da realidade é tanto mais possível quanto menor for o conhecimento que os cidadãos têm dos acontecimentos. Um país saído de um regime ditatorial que conseguiu impregnar a auto-imagem dos portugueses de uma pequenez de espírito que pouco tem que ver com a sua história, uma percentagem de analfabetismo inaceitável para um país europeu em meados dos anos setenta do século XX, uma rede de caciques que mal foi beliscada com a queda do Estado Novo criaram o contexto ideal para a plantação de medos e ilusões que provocaram que, a uma revolução, rapidamente se sucedesse um “establishment” em tudo seguidor das tendências da estação passada. Ler Quando Portugal Ardeu é, no fundo, encarar de forma despida e brutal esse modo de ser português tão caro ao Salazarismo, assustado e medroso, fanático do respeitinho e avesso a qualquer ideia progressista.
O posicionamento de Miguel Carvalho ao longo do livro é puramente jornalístico, sem tomar parte de um dos lados da querela, habitando dessa forma um território que vai potenciar a compreensão dos factos apresentados. Sendo óbvio que um bom conhecimento das figuras e personagens que habitaram o Portugal desse período nos permite uma melhor leitura do impacto da informação que nos é apresentada, bastará ter uma noção da realidade que vivemos hoje em dia, bem como daqueles que sempre se comportaram como se fossem pais de um qualquer regime, para nos sentirmos incomodados com a forma como, para lá dos decretos dos vencedores, a história se fez.
O confronto com os dados apresentados nos livro levam-nos, obviamente, a questionar de forma mais concreta as bases daquilo a que chamamos democracia, bem como nos aproximam de um modo latente de acontecimentos noutras partes do mundo em que os mesmos protagonistas acabaram por ter presença. Reforça também o facto de, no quadro institucional em que vivemos, se mantém uma necessidade quase dinástica de ver o mundo como um território de senhores e seguidores, uma realidade que não nos é distante e, sobretudo, parece não estar a ser combatida pela educação e cultura que disponibilizamos aos cidadãos do nosso país.
Completei a leitura deste livro com a de um outro, Dossier Terrorismo (Editorial Avante, 1977), que num formato de relatório nos apresenta dados mais concretos e detalhados sobre as actividades da rede bombista que é assunto do livro de Miguel Carvalho, como dos ramais que se estendem pelo país todo a partir de uma mesma ideia e, muito provavelmente, de uma mesma origem instigadora e investidora. Também por isso recordei as palavras de Dylan Thomas, trazidas para o início deste texto. Porque temos como missão não entrar docilmente na noite serena em que nos pretendem enjaular.
[LC]