A sugestão de uma solução tecnológica para a identificação de contactos com o vírus Covid-19 ocupou o espaço público como uma espécie de pequeno milagre para resolver o medo. No entanto, acaba por ser uma solução que se alimenta do medo para possibilitar o avanço de medidas que, antes da pandemia, não receberiam o mínimo crédito da nossa atenção.
Em entrevista à SIC Notícias, na noite de terça-feira (5 de maio), a cientista Joana Gonçalves de Sá sublinhava os problemas que podem vir da utilização de uma ferramenta voluntária a partir de smartphones. Logo à partida, estes dados levariam a que uma boa parte da população (e, dentro dela, uma boa parte de elementos de grupos de risco) não utilizassem a ferramenta, ou por opção, ou por não deterem um smartphone. Por outro lado, a tecnologia bluetooth ou GPS permite sinalizar a aproximação física num determinado espaço, mas não diferencia entre essa aproximação e um contacto real.
Ou seja, através desta tecnologia, o vizinho do prédio ao lado, alguém que caminha do outro lado da rua, uma qualquer pessoa que passe dentro do seu carro, acabarão por estar no mesmo “espaço físico” identificado pela tecnologia. Ora, este tipo de situações levará a um número excessivo de alertas, obrigando a imensos testes em pessoas que, na realidade, acabaram por não estar em contacto. Esse grande número de alertas sem infeção acabaria por oferecer uma falsa sensação de segurança, enquanto, por outro lado, poderíamos estar em contacto próximo com alguém (sem a ferramenta tecnológica instalada no seu telemóvel) sem receber qualquer aviso.
Uma questão de responsabilidade
Por outro lado, Francisco Miranda Rodrigues, em artigo no Jornal Económico, realça que “aquilo que vivemos até aqui, com enfoque na responsabilidade de cada um, eficiente, explicável cientificamente pela força do altruísmo, que é uma das características que nos diferencia dos restantes animais, ficou associado também a um nível de confinamento que ajudou a deitar abaixo as economias mundiais. Todavia, é importante que o medo não nos tolha o pensamento e não nos precipite para soluções mágicas e de pouco esforço.”
Ou seja, a nossa resposta ao desconfinamento corre o risco de passar pela adoção de soluções fáceis, quase “milagrosas”, para corresponder à complexidade que nos foi colocada por esta pandemia. Na verdade, a nossa capacidade para compreender o perigo e para nos reorganizarmos perante a ameaça, permitiu uma resposta cabal às necessidades impostas pelo isolamento social, defendendo a estrutura hospitalar no nosso país (o que estava, no fundo, na primeira linha de necessidades desta pandemia — a defesa da saúde de cada um depende da estrutura comunitária existente, não é um ato individual de egoísmo). O sair de casa não pode estar associado a uma facilitação da nossa responsabilidade, porque essa é a resposta que nos coloca em maior risco.
Não adotar a solução fácil não significa, finalmente, que não existam soluções. Estamos há quase dois meses neste processo e as soluções estão, sim, à vista. Distanciamento social sempre e quando necessário. Cuidado connosco e com os outros nas nossas ações do dia-a-dia. Cuidados sanitários e de higiene. Identificação precoce através de um contínuo afinar da realização de testes e a utilização de questionários aos infetados que permitam traçar as pessoas que, na realidade, tiveram um contacto de risco. Parece uma medida demasiado analógica para um mundo que procura respostas simples e rápidas para todos os problemas. Mas a vida, como nos tem ensinado (às vezes de forma bruta), é uma rede complexa para a qual temos, diariamente, que encontrar resposta.