A opção pela metáfora bélica na abordagem à pandemia de Covid-19 foi um convite à distração da verdadeira necessidade que ela coloca à sociedade. Não, isto não é uma guerra.
Uma guerra implica uma tensão, um conflito crescente sem resolução diplomática, eclodindo num enorme investimento em armas para determinar uma posição de força em relação ao inimigo. Dos dois lados, montam-se racionais para abordar a situação conflituosa. Escolhe-se de que lado se está, combate-se a batalha à espera, não de uma vitória, mas da abdicação do rival — na guerra, é a palavra do inimigo que nos entrega a possibilidade de vencer.
Não é nada disso que esta pandemia nos obriga. Não existem lados, não existe tensão, não existe conflito ou sequer inimigo. Não há nada que o vírus possa racionalizar, tornar discurso, perante a nossa ação. O que esta pandemia constitui é um fenómeno natural de larga escala, que aproveita a forma como a nossa sociedade se organiza para atingir um larguíssimo número de pessoas que, com ou sem sintomas, se transformam em portadoras do vírus (e, consequentemente, agentes dessa transmissão).
O primado da ciência em ação
Para corresponder à pandemia valemo-nos, acima de tudo, da ciência. O mundo já enfrentou outras pandemias e outros coronavírus. O desconhecimento em relação ao Covid-19 é o desafio que todos os especialistas se prepararam, em exercícios, para abordar. A consequência imediata do enfrentar da pandemia é a análise em tempo real da tentativa e erro. Assistimos, assim, à construção da ciência em direto nos telejornais, nas redes sociais, bem como a estrutura governativa dos nossos países, concelhos e freguesias se tenta, à mesma velocidade, adaptar ao conhecimento produzido para tomar decisões políticas.
Na guerra, as sociedades fortalecem-se com certezas. Não se fazem perguntas, porque há um inimigo comum para enfrentar. Nesta pandemia, pelo contrário, fortalecemo-nos através das dúvidas. Ao longo das semanas que levamos de confinamento e isolamento social, percebemos que a verdade é algo que está em mutação, adaptando-se constantemente a um conhecimento crescente do impacto do vírus e revendo a sua resposta em tempo real. Em nada nos serve o léxico guerreiro, militar, conflituoso, porque aquilo que temos pela frente é uma oportunidade demasiada humana de nos desenvolvermos enquanto seres humanos. É a nossa capacidade de adaptação que está em causa.
Palavra, forma de organização social
O léxico guerreiro tem levado a inúmeros enganos ao longo do processo. Diferentes países competem entre si em busca de uma cura, com o pensamento de vencer a guerra (não só no terreno, mas economicamente) em causa. Comparam-se dados de contextos diferentes, porque nenhum país quer ser pior que o seu vizinho. Medem-se o tamanho das armas escolhidas por cada Governo, estabelecem-se planos alternos com menos dados disponíveis e menos conhecimento consultado, porque, na guerra, tudo parece valer.
Expande-se a ideia de conflito até a uma potencial linha-da-frente, como se enfrentar a pandemia se fizesse num hospital (onde se tentam apaziguar os problemas da infeção) e não no nosso dia-a-dia, através do distanciamento social, da lavagem das mãos, dos cuidados que, enquanto comunidade, devemos tomar. A linha-da-frente somos todos nós, os que podem ter que enfrentar o vírus cara-a-cara, no seu trabalho, nos transportes públicos, numa ida ao supermercado.
Por isso, não, isto não é uma guerra. A ideia não satisfaz as necessidades que temos tido pela frente, que teremos pela frente no futuro de reabertura de portas que hoje se inicia. Precisamos de um discurso que nos conforte perante a incerteza do quotidiano, que nos fortaleça nas nossas opções de base, que nos una em relação ao que o nosso modo de vida permite contra nós próprios. É, na verdade, um profundo momento de paz, que não deixa de nos criar desafios imensamente exigentes no que somos enquanto pessoas. É humano, brutalmente humano.