Não há novidade no “novo normal”. As pessoas continuam a agir como as pessoas agiam, o desejo de domínio do outro mantém-se igual, a nossa capacidade de perceber o mundo continua a ser colocada à prova. Continuamos a ter que fazer muitas perguntas e a desconfiar de quem só tem respostas.
Vivemos tempos estranhamente novos, estranhamente velhos, no desafio que nos é lançado por uma pandemia à escala global, numa época onde as ligações entre lugares e conhecimentos do mundo se faz à velocidade de um click no computador ou do pressionar do dedo no telemóvel. O instantâneo da chegada da informação reflete-se no igualmente célere expressar de uma reação, que anula a reflexão e, acima de tudo, não permite colocar em causa nenhuma das pontas do espectro: o que nos chega ilude o pensamento crítico no mesmo embrulho em que a nossa opinião sai.
A gente não lê
E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Nao ver os vultos furtivos
Que nos tramam por tras da luz
(Carlos Tê)
Associado à velocidade, uma certa ideia de facilidade do que pretende ser a vida transformou-se em exigência de todos. Queremos soluções fáceis para problemas complexos, explicações simplificadas para noções complicadas, queremos quem nos aponte um caminho único por entre a floresta de acontecimentos que é a vida numa escala mundial — mais do que nunca, percebe-se que uma opção individual na China pode criar um problema coletivo em Portugal, e vice-versa. O que não se percebe é como havemos, cada um de nós, de lidar com isso.
Sente-se, ao longo destes meses, como muitas pessoas escolhem, simplesmente, afastar-se do choque com os desafios que o conhecimento nos impõe. Pessoas que decidiram deixar de ver as notícias na televisão porque isso lhes causava alguma ansiedade. Outros que procuram desesperadamente um líder de opinião que escolha um lado por eles. Muitos mais os que confiam cegamente em publicações não editoriais publicadas em redes sociais. No entanto, todas essas opções acabam, sempre, por chocar com a construção não suficiente informada de um lugar no mundo que não evita uma conclusão concebida com a pressa característica dos dias.
A culpa, ideologia dominante
Importantes assuntos passam nas agendas de ano para ano
e muitas outras coisas fazem as pessoas infelizes
(Ruy Belo)
Este contexto tem sido particularmente propício para o crescimento da culpa enquanto ideologia dominante. A mesma reflete-se de todos os espectros políticos, não os diferenciando na forma como a ela recorrem para se impor nas suas visões do mundo. A pandemia não oferece este estratagema como novidade, mas intensifica a sua utilização, isolando em pequenas minorias aqueles que tendem a pensar para lá do enclausuramento numa visão exclusivamente moralista da sua ação.
Ou seja, enquanto se procura uma voz de comando, os vários candidatos ao lugar desenvencilham-se na criação do seu mapa do mundo culpando aqueles que não entendem a sua projetada mundivisão. Este princípio serve tanto quem segue disciplinadamente as ações do Governo, como quem protesta com elas. Alimenta tanto os mais conservadores como os potencialmente mais revolucionários. Mascara-se (e aqui não se fala de máscaras sociais) tanto de “Guia para a vida” como de “Guia para a morte”. Aponta-se o dedo, de forma a descansar as consciências na necessidade de ter um outro lado mau. Seja ele o fascista, o incompetente, o comunista, o estrangeiro, o diferente.
Ainda estamos aqui
A palavra proletário tem a mesma origem de prole.
O proletário só tinha filhos — a prole — nada mais.
Um proletário do século XXI sem filhos é um problema etimológico.
(Gonçalo M. Tavares)
Há muito quem queira fugir à evidência que nos é proposta pela pandemia: como tomamos decisões enquanto comunidade e de individualmente e como nos relacionamos com isso. Porque o grande desafio às estruturas de saúde lançado pelo aparecimento deste novo coronavírus foi, nesta primeira onda, suportado. Mesmo enfrentando uma situação desconhecida (as simulações prévias que se puderam fazer, para fins de estudo, não tinham nenhum exemplo onde se basear), as autoridades de cada país tentaram definir princípios, as populações puderam perceber como se constrói ciência e, no meio de tudo isto, permitir a sobrevivência das nossas comunidades. Esse primeiro momento foi conquistado.
Agora resta-nos entender como abordar o passo seguinte. Aquele em que o exemplo da pandemia nos serve para simular futuros problemas e futuras resoluções. Porque não podemos depender apenas de uma voz de comando para entrar na linha. Bem pelo contrário. Se esta pandemia nos demonstrou algo de bastante evidente, é que a existência de uma voz única é uma ilusão. Precisamos de quem saiba entender as várias fontes científicas e sociais, de quem esteja preparado para tomar decisões em momento de enorme pressão, tanto quanto precisamos de confiar na nossa capacidade individual para tratarmos o conhecimento que é produzido à nossa volta. Precisamos de enfrentar os problemas (o etimológico e os restantes), com a forma como as nossas ferramentas evoluíram.
Porque independentemente de como tudo vai ficar, o que é já certo é que ninguém ficou como dantes. Ideia que nos deve servir para enfrentar quem nos queira manter iguais.