Questionar certezas em tempos de pandemia

Estar demasiado seguro em tempo de incertezas parece-nos aproximar dos erros de leitura do que acontece no mundo. Como entender o problema, como subsistir na prática, como elaborar uma resposta. Um exercício em processo ainda sem fim à vista.

Os grandes momentos históricos impõem grandes choques ao nosso conhecimento, às nossas crenças, aos nossos comportamentos. Não por acaso, quem os vive, encara-os com um antes e um depois que deixa profundas cicatrizes na humanidade. Nem sempre, no entanto, são igualmente ricos os processos de vivência desses momentos de crise. É difícil entender como pensar no meio do furacão, como entender, no processo diário, o que é o nosso sofrimento ou a nossa capacidade de lutar, perante aquilo que é o pulsar do mundo em relação a esses mesmos assuntos.

O problema: exercício

Na última semana, quer Francisco Mendes da Silva, no JN, quer Luís Aguiar-Conraria, no Expresso, confrontaram as certezas que o vírus abalou (título do texto do segundo). É um exercício que, estou certo, a grande maioria de nós já fez. Enquanto vivo este problema, penso sobre ele, reflito sobre a forma como ele me alcança, espero encontrar um caminho que me faça ultrapassá-lo. Mas, como vamos sair deste processo, creio eu, é algo que, por agora, ainda não podemos ter como certo. Aliás, se há algo que, pessoalmente, este tempo tem marcado é, acima de tudo, a troca de certezas por dúvidas, o conforto que se encontra na dúvida é, por agora, aquilo que me sossega em relação ao andar do mundo.

Esta é uma interrupção forçada, não é subversiva. Não tem a intenção de transformação. É uma contingência. Se o sistema pudesse continuar, continuaria” — Catarina Botelho (Ípsilon; 1/05/2020)

No largo trabalhado realizado por José Marmeleira, no Ípsilon da passada semana, entendemos a reflexão dos artistas da imagem, os fotógrafos, na sua relação com a rua vazia. É curioso entender a frase de Catarina Botelho que sublinhei. De certa maneira, a fotógrafa demarca a pandemia nas suas raízes. Questões de força, subversão, contingência, assomam perante a possibilidade de transformação. É certo que, se o sistema pudesse continuar, se todos tivéssemos a possibilidade de continuar a viver na dita normalidade, seria isso que faríamos. Não houve um ponto de ruptura a qualquer nível que justifique a existência desta pandemia.

A prática: dicotomia

Tanto assim foi que muitos se viram expostos ao pior de dois mundos neste processo. Por um lado, continuando obrigados a sair de casa, trabalhando, tantas vezes em situações de poucos cuidados na proteção à infeção que nos assola, por outro lado, sofrendo na pele os efeitos da quebra económica. Por um lado, ficando sem emprego ou vendo o seu trabalho reduzido a mínimos insustentáveis, por outro, impossibilidade de assistir convenientemente os seus familiares em situação de risco. Para eles, o sistema continuou. De que forma isso não lhes cria, também, a mesma dicotomia de tentar ver a pandemia como um grande momento histórico, com um antes e um depois, na maneira como enfrentam a sua vida?

Os nossos sentimentos sobre as coisas não dependem da forma como o somos capazes de elaborar discursivamente sobre eles. Um homem ou uma mulher que não sabe como falar de si próprio e do seu posicionamento no mundo, sofre de igual forma. No entanto, tantas vezes somos expostos a uma realidade como que imutável sobre essa grande força humana que não discursa. Tantas vezes escutamos quem parece falar por eles, como se fossem eles próprios, mas na musculação de um pensamento que se agarra a essas bóias de salvação perenes. Era o antes, certo? Como será o depois não saberemos. Mas, no durante, já parece óbvio que, sim, era o antes, era o antes que se acomodava dessa forma às sensações.

A resposta: consistência

Esta interrupção forçada acabará por ser vencida. A subversão continuará a ser contida. A transformação necessita, não só de oportunidades, mas também de intenções. O sistema continuará — em todos os âmbitos — e em todos eles poderá ser subvertido, transformado, sem medo de enfrentar o desconhecido que possa vir com essa revolução das nossas atitudes. Tão só devemos aplicar ao que é nosso, aquilo que esperamos aplicar aos outros. Parece um caminho simples, mas é, seguramente, o mais complexo. É, seguramente, o mais atraente para viver. Num grande momento histórico, a pensar o futuro do nosso futuro.