Caricaturar a voz dissonante: Susana Peralta, um estudo de caso

Susana Peralta foi hoje capa do jornal i, com uma chamada a título de uma ideia que a transforma, quase de forma instantânea, num nome e numa cara que merece a rejeição de grande parte dos portugueses que navegam pelas redes sociais. “A crise devia ser paga por toda a burguesia do teletrabalho”, entre aspas, é uma frase que não está registada na entrevista publicada no interior do jornal. Tanto assim é que a frase que encabeça a página de lançamento desta matéria tem um título bem diferente, “Podia-se lançar um imposto extraordinário a quem não perdeu rendimentos”. 

Analisemos a ideia da economista Susana Peralta. Na página 23 do jornal, a meio da resposta, sugere algumas possibilidades para a gestão governamental da crise económica que afeta quem ficou sem trabalhar ou, por outro lado, é obrigado a trabalhar por não ter rendimentos que lhe permitam a adesão ao confinamento. A utilização do termo “burguesia” associado com “teletrabalho” pode conduzir a leituras díspares sobre o objeto referido pela autora, algo que a entrevista ajuda, a meu ver, a esclarecer. Ou seja, no ponto de onde é retirada a base do que foi capa, creio ser justo alimentar dúvida sobre o enquadramento que a própria capa sugere, independentemente de estarmos ou não de acordo com o argumento apresentado. 

A política tem de ser coerente: se não temos dinheiro para compensar essas pessoas, então com que legitimidade estamos a pedir-lhes para não trabalharem? Por outro lado, há sempre a possibilidade de cobrar impostos – é outra maneira de ir buscar recursos. Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste setor e são as pessoas com mais escolaridade. Podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise. Em terceiro lugar, era ir buscar dinheiro e saber onde se investe o dinheiro. Por exemplo, o voluntarismo, a fuga para a frente de salvar a TAP quando se está a deixar estas franjas da sociedade mais desprotegidas é muito problemática. Mas tudo isto são escolhas políticas.

O principal problema que daqui sai é, no entanto, outro. O interesse que tenho nos artigos que Susana Peralta costuma publicar no Público e em trabalhos em que tem vindo a participar e a divulgar, levou-me a ler toda a entrevista. E aí encontramos análises sustentadas sobre a gestão do país nos últimos anos, propostas claras para diferentes abordagens da gestão pandémica, nomeadamente na temática escolar, da qual a economista participou num estudo, uma visão dissonante da grande maioria do comentário económico nacional. A generalidade daqueles que partilharam e comentaram a capa do jornal i, no entanto, não leram a entrevista. 

A transformação de Susana Peralta em caricatura não é da exclusiva responsabilidade do jornal que publicou a entrevista, mas o jornal colabora com ela. Da mesma forma que outros órgãos de informação colaboraram, de forma mais ou menos explícita, com a visão que se tem de muitas figuras de voz dissonante, seja João Ferreira, Isabel Camarinha, Catarina Martins ou Mamadou Ba. Transformam-se essas vozes em chamadas a capa que são facilmente partilháveis através das redes sociais sem qualquer espaço de reflexão ou entendimento sobre aquilo que defendem, tornando mais difícil o debate onde possam conviver opiniões contrárias. Também é assim que se destrói a forma de conversar e pensar em sociedade. E era bom que todos reservássemos alguns minutos para pensar na forma como reagimos ao imediatismo dos dias.