Ser um na era da multiplicidade


A construção da nossa existência faz-se, cada vez mais, no confronto daquilo que somos offline com aquilo que somos online. Se há uns anos atrás (e se algumas pessoas que vivem ainda em mundos de há uns anos atrás) parecia ser possível dizer coisas como “eu sou assim na vida real” ou “aquilo que sou online não é real”, nos dias de hoje essa contaminação é de tal forma instituída que não permite existências duplas. Ou seja, tudo o que fazemos durante o tempo de um dia concorre para aquilo que nós somos, independentemente da plataforma que estamos a utilizar. 

Essa ideia torna-se ainda mais sensível quando, por fruto do acaso, cruzo a leitura de “Branco” de Bret Easton Ellis com o último especial de David Chappelle no Netflix, “The Closer”. Em ambas as obras, o mundo onde se conjugam existências offline e online numa mescla em que os limites e fronteiras de uma se esbatem nas linhas e visões de outra está no centro do debate. Seja na maneira como Easton Ellis se apercebe da forma como as redes sociais o vão afectando e puxando para um aglomerado de duas personagens que ele preferia manter separadas, seja na maneira como Chapelle, mais exposto ao confronto com aqueles que seguem o seu trabalho, nos fala das suas experiências de vida. 

O nosso comportamento em sociedade transformou-se, assim, de forma profunda, num momento da história onde o pensamento sobre ele ainda se demora a definir contextos. Foi mais rápida a forma como as atitudes online migraram para territórios da realidade do que o desenho filosófico desse caminho. E seguramente por isso há, hoje, um clima de desconforto na maneira como cada um se apresta para enfrentar as vicissitudes das formalidades necessárias para se viver em sociedade. Sim, precisamos de saber como nos comportar em cada momento, não perdendo a nossa individualidade numa espécie de conformação, mas evidenciando a capacidade de termos uma identidade que corresponde às exigências de cada enquadramento. Ao colocarmos de lado essa necessidade, estaremos apenas a ficar mais pobres na nossa capacidade de intervir no espaço público.