Viver e morrer no Carnaval de Torres Vedras

Fora das cidades onde se festeja o Carnaval, este fim-de-semana foi apenas mais um de entre muitos. Pela televisão chegaram imagens de grandes manifestações de alegria, em formato direto e última hora, “vamos falar com este senhor/a que está a passar”. Mas, conjugado entre tradição e evento de atração turística, o Carnaval que luta por ser feriado, faz parar por completo lugares como Torres Vedras. 

Nas últimas semanas, Nicolas Cage andou pela região e mal saberia ele que teria nesta localidade um excelente cenário para a rodagem do seu mais premiado filme. Anualmente, repete-se a história de “Viver e Morrer no Carnaval de Torres Vedras”, onde a tradição do Carnaval luta contra a aparente inevitabilidade de uma transformação em festival de inverno que, para já, em 2019, viveu debaixo de sol e suficiente calor. Mas ainda só vamos a meio porque, como dizem os locais, a vida são dois dias e o Carnaval de Torres são seis. 

“Eu fiz tudo para você gostar de mim”

Já mal se ouvem pelas ruas as marchinhas de Carnaval, oriundas do Brasil, que nascidas da linhagem das marchas populares, enchiam as festas carnavalescas até há uns anos atrás. Se há transformação que se operou no Carnaval de Torres, essa bem pode ser notada ao nível musical, com a passagem das ditas marchas para uma tradição musical que vem do Carnaval baiano, misturado com o samba que, pelos dias de hoje, até já se fez música oficial.

Mas o Carnaval mais puro, aquele que sai de casa dos habitantes do Concelho de Torres Vedras, dá os seus primeiros sinais de vida nas manhãs de sexta-feira, quando o centro da cidade se abre para receber mais de 7.000 crianças oriundas das escolas, mascaradas a preceito com o tema deste ano, “Made in Portugal”. É uma espécie de batismo para os mais pequenos, que desde bebés são expostos à tradição de uma alegria carnavalesca apegada ao corso que decorre nas principais artérias da cidade. 

Deste Corso Escolar emanam, ao mesmo tempo, os primeiros sinais de um percurso de vida carnavalesco, com muitos adolescentes a ficarem pelas ruas, onde já há barraquinhas e outros estabelecimentos (entre os estabelecidos e os provisórios da época) a vender cerveja. A cidade fica sitiada. E quando ao final da noite, a Chegada dos Reis marca a passagem do poder local para as autoridades carnavalescas, numa encenação que se esforça por manter a tradição, já se dividem as forças do Carnaval entre o que é histórico e o que não é. 

“De dia é Maria, de noite é João”

Há um outro Carnaval, no entanto, que começa com meses de antecedência. O da preparação dos inúmeros grupos carnavalescos que enchem o corso de sábado à noite, o dos “assaltos” que, de prévia encenação carnavalesca por casas de amigos, se transformou, nos últimos anos, num Carnaval pré-Carnaval que torna o centro da cidade uma festa só durante os quatro fins-de-semana que antecederam os festejos oficiais. Que ninguém se espante de se cruzar com grupos de mascarados fora de época quando está por Torres Vedras, com todos os bares a contribuírem para o ambiente carnavalesco. 

Se “até ao ano de 1923, o Entrudo de Torres Vedras era passado com os rapazes a ‘enfarinhar’ as moças que se aventuravam na rua”, como escreve o historiador Jorge Ralha, a tradição do Carnaval de Torres foi-se construindo ao longo do Século XX, bebendo de diversas fontes que o colocam entre os Carnavais de tradição mediterrâneos, com Nice como principal influência. As “Matrafonas”, promovidas a símbolo com a própria eleição de uma Rainha de Carnaval que é um homem, no respeito das normas sociais do século passado, transportam o que outro autor, Rodrigo Furtado, declara como a “evidência e o excesso próprio do Carnaval”, homens mascarados de mulher para afirmar a sua masculinidade. O mundo ao contrário para reafirmar a sua ordem natural.

Nos dias de hoje, grupos como os “Ministros e Matrafonas”(e os seus épicos almoços de feijoada ou mão de vaca em dia de corso), os “Fidalgos”, as “Lúmbias” ou as “Marias Cachuchas” funcionam como uma espécie de guardiões de tradições que marcam essa continuidade histórica, reforçadas ainda com a existência da Real Confraria do Carnaval de Torres. Também a O.S.G.A. (banda composta por jovens músicos da Banda dos Bombeiros locais) e outros grupos musicais do concelho, bem como os tradicionais Zés Pereiras e respetivos bombos, asseguram uma presença da música tradicional. O acompanhamento dos Reis, a manutenção de marcas de história ou a inovação, no reforço de momentos de animação carnavalesca, como o episódio da Santa da Bola, este ano, boneco censurado que se tornou símbolo do Carnaval de 2019, ou mesmo na animação musical fora de horas nos percursos do corso. 

“Foi numa casca de banana que eu pisei, escorreguei, quase caí”

Se boa parte da história do Carnaval de Torres se desenhou através das associações locais que promoviam os bailes carnavalescos, dando continuidade a um corso que, decorrendo nas tardes de domingo e terça-feira, marcava uma diferença essencial para com outros carnavais nacionais, a ausência de barreiras entre desfile e público, numa constante colocação em causa da ideia de espetáculo e assistente, a evolução do mesmo acabou por transformar esse tecido base, sendo hoje completamente substituídos pelos bares locais, reforçados com outros tantos espaços preparados para a venda de bebidas alcoólicas pela cidade. 

A antropóloga Ana Almeida sublinha “este investimento na diversão noturna, a par do excesso de álcool e a pressão para não dormir, parece contribuir para que, em geral, os jovens estejam alheados da participação e envolvimento do espírito folião do Carnaval”. Visitar Torres Vedras neste domingo de manhã é como percorrer um cenário de guerra, onde uma maré de copos de plástico e outros dejetos poluem as ruas do centro histórico, ainda em convívio com bares abertos, foliões que chegam e outros que partem para a discoteca mais famosa do Carnaval e os resquícios de quem, à falta de forças, acabou por adormecer em algum canto. 

O Carnaval de Torres vive numa tensão entre tradição, resguardada num núcleo cada vez mais reduzido de “foliões”, e a transformação em evento festivaleiro, onde imperam os “visitantes”, onde o consumo de álcool e a pressão do crescimento mediático se continua a exercer. Segundo a Organização, em 2018, 400.000 pessoas visitaram o Carnaval de uma cidade que tem cerca de 20.000 habitantes. Os primeiros dias de 2019 confirmam o crescimento, com a temperatura de sábado à noite e o sol de domingo à tarde. Mas ainda vamos a meio. Ainda há tempo para viver o Carnaval de Torres até que, na próxima quarta-feira, o Enterro do Entrudo confirme a morte do mesmo. 


[Texto publicado no Expresso Diário de 4 de março de 2019]