O espaço partidário, a sua reconfiguração e as autárquicas como possibilidade

A fragmentação do campo dos partidos em Portugal lança novas questões sobre a forma como entendemos a política. O traçar de diagnósticos e a elaboração de planos de reconfiguração deste território encontra espaços de diálogo num ano de eleições autárquicas. 

Diagnóstico e destruição

Portugal na era dos homens fortes é um livro escrito no vórtice de vários acontecimentos que nos colocam perante a necessidade de afinar estratégias e planear os passos do futuro. Bernardo Pires de Lima enfrenta o crescimento do autoritarismo num momento de crise da democracia, ao mesmo tempo que procura redefinir o posicionamento do nosso país num momento, tendo o livro sido publicado em setembro de 2020, em que a pandemia, ao mesmo tempo que perturba a claridade do caminho, oferece uma oportunidade para reiniciar processos.

O diagnóstico de Bernardo Pires de Lima é particularmente apurado no que toca à situação partidária que aflora um pouco por todo o mundo. “Os partidos clássicos não se prepararam para a velocidade deste mundo, e essa é que é uma das crises da democracia: para problemas cada vez mais complexos, exige-se uma preparação programática e comunicativa muito mais sofisticada. Isto não quer dizer imperceptível, antes reflectir uma proposta política credível, capaz e corajosa. O mais fácil é negar, ridicularizar e ter uma solução simplista. Esse é o papel dos populistas encartados, alguns a começar a sair da toca em Portugal.”

Os perigos do simplismo na política geram respostas e contra-respostas que tendem a afunilar a visão de quem analisa as decisões. Se os movimentos populistas açambarcam com facilidade todo o tipo de negacionismos debaixo da capa da incapacidade de quem está no topo (os “políticos”, os “jornalistas”, quem estiver no seu caminho), a resposta a esse posicionamento na sociedade através da exposição (e criação) de ridículos arrisca-se, muitas vezes, a tomar o mesmo tipo de discurso na direção contrária. E quando o discurso se instala, já a corrida está a ser ganha por aquele que pretende destruir o “sistema”. 


Caminhos para a reconfiguração

A ideia de uma reconfiguração de campos partidários tem ganho gás nos últimos tempos. Em Portugal, este movimento nasce pela direita, no pós-Troika, fragmentando-se um campo político que vivia estrategicamente junto desde o 25 de abril, mas estende-se a todo o espectro partidário, ajudado pela maneira como a formação de blocos parlamentares se passou a elaborar em momentos pós-eleições. À necessidade de encontrar parceiros para construir maiorias e fazendo-o de forma pontual com diferentes composições, fortaleceu-se o entendimento positivo da fragmentação. Pelo menos até a umas eleições autárquicas que podem sugerir novos regressos a entendimentos pré-eleitorais. 

A reconfiguração pode, desse ponto, ser entendida como uma clarificação das partes. A cada partido político confere uma área de interesses que está continuamente a ser testada e pesada no ambiente parlamentar. Esse é, a meu ver, o terreno da complexidade que refere Bernardo Pires de Lima, entendendo que para lá da luta parlamentar, é necessário encontrar espaços de debate e construção de planos que permitam encontrar linhas fortes de decisão política para enfrentar a fragilidade de um campo político atomizado. Os campos de interesses estão, neste momento, fora do desenho dicotómico direita/esquerda. Portanto, mais do que uma reconfiguração, ainda estamos à procura das melhores lentes para compreender como enfrentar um mundo que evolui sobre intersecções. 

Em Itália avança-se já numa fase mais adiantada desta atomização do campo político. Num texto no Le Grand Continent assinado por Alberto Alemanno e Gilles Gressani, entende-se a ambição do governo de Mario Draghi desta forma: “a reconstituição de um espaço institucional capaz de conduzir, num contexto de volatilidade parlamentar absoluta e de liquidificação dos partidos, o jogo de forças políticas para um centro de gravidade republicano, propondo-lhe participar, transformando-se, na reconfiguração do espaço político”. Um momento de crise profunda que tem dois desafios enormes pela frente. Ter sucesso na gestão do país para a saída desta crise e a capacidade para abrir espaços concorrentes que dialoguem em futuros momentos eleitorais. 


Espaço de diálogo: as autárquicas como possibilidade

O desafio em Portugal passa por não tentar acelerar o processo de diálogo necessário, mas por defini-lo nos momentos em que este se abre como possibilidade. Em ano de eleições autárquicas, e perante a especificidade eleitoral deste momento, onde a condução das autarquias fica nas mãos da candidatura mais votada, é tempo de encontrar campos onde visões do país, das regiões e dos municípios se reunam e possam alinhar em planeamentos que correspondam de forma mais direta à complexidade de cada questão que nos é colocada. 

Lisboa será um dos laboratórios interessantes, pela forma como Carlos Moedas surge a federar partidos que formam o campo da direita. Mas, pelo país, diferentes coligações e movimentos independentes encontram também nessa possibilidade um território para redefinir campos e abordar tendências políticas. A observação cuidada das movimentações que o país autárquico sugere, bem para lá da contagem de conquistas ou da divisão do mapa entre vencedores e vencidos dos dois maiores partidos, é um autêntico campo de elaboração de uma reconfiguração que vá para lá do interesse mediático do momento. Na prática, no terreno, com capacidade para enfrentar a vontade dos eleitores, mas com consciência de que a política está para lá do resultado eleitoral. 


Notas

- O livro de Bernardo Pires de Lima, Portugal na Era dos Homens Fortes é uma edição da Tinta-da-China e está à venda no site da editora. 

- O artigo de Alberto Alemanno e Gilles Gressani foi referido no podcast Perguntar não ofende em que Daniel Oliveira entrevista Miguel Poiares Maduro.