Um ataque ao futebol como o conhecemos, a Superliga usou de armas que não são novas no futebol que temos vivido nas derradeiras décadas. Perceber porque é o negócio do futebol precisa de alargar a sua base de trabalho às comunidades onde se desenvolvem os clubes e à cultura que estes construíram durante séculos é um bom passo para acertarmos um caminho onde todos possam ter um pouco daquilo que desejam.
Superliga: capitalismo e consumo
A ideia de que o negócio do futebol está a morrer, lançada por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, é um bom princípio para olharmos para a forma como a Superliga foi apresentada e como acabou recusada de forma brutal pela maioria dos adeptos. Na sua presença no programa El Chiringuito, Pérez falou sempre de “futebol” e quase nunca de “negócio do futebol”. Percebemos a ideia de comunicação, mas a forma atabalhoada como pretendeu ligar as duas coisas acabou por denunciá-lo.
Primeiro, a Superliga faz todo o sentido para os grandes clubes-empresa que vivem num universo de procura constante de lucros. A união destas instituições num mercado à parte, com regras autoestabelecidas de concorrência, portas fechadas e promessas de sustentação financeira é uma espécie de sonho de ouro capitalista. Para os doze clubes que deram este passo, o anúncio prometia mais dinheiro, mais controlo sobre o número de jogos, um prato cheio de história de clubes que têm a capacidade para gerar interesse planetário nos seus encontros.
O problema deste sentido é que, no final das contas, alguém teria que pagar todo este aparato e os empréstimos prometidos pelo banco J.P. Morgan. Eram precisos consumidores para este produto de excelência lucrativa. E os consumidores não pareceram muito interessados. Genericamente, estes doze clubes, independentemente da sua organização (seja ela associativa ou empresarial), têm que lidar com um quadro de consumidores muito diverso. Existem os adeptos de proximidade, sócios dos clubes, pertencentes à comunidade onde este clube desenvolve a sua atividade e os adeptos externos, espalhados pelo mundo, que aderem a uma forma bastante mais estilizada daquilo que o clube significa.
Futebol: comunidade e magia
O futebol nasceu nas comunidades. Nasceu do desejo e da necessidade de identificação de uma cidade, de um bairro, de uma rua, de um grupo de pessoas. É nessa força social que o futebol se expande pelo mundo inteiro, conectado a um conjunto de regras de jogo que são fáceis de assimilar e ainda mais simples de replicar enquanto terreno de jogo. Para o futebol existir não são precisas quatro linhas, não são precisas balizas oficiais, muitas vezes não é preciso sequer uma bola - todos os seus elementos podem ser facilmente substituídos para se jogar com os pés.
Essas comunidades já se sentem suficientemente afastadas do negócio do futebol quando temos ligas e federações internacionais focadas na organização de competições que nos afastam da ideia inicial. Os Mundiais e os Europeus de clubes têm, cada vez mais, bancadas assépticas organizadas por patrocinadores. A Champions League e a maioria dos jogos das Ligas nacionais disputam-se em horários e com preços que afastam as pessoas do hábito de ir ao futebol ver a sua equipa. A constante transmissão de jogos na televisão retrai a sensação de acontecimento único que os jogos costumavam ter no nosso imaginário.
Eu ainda nasci num mundo onde o futebol estava associado a essa magia. O futebol era um jogo que se jogava nos campos das aldeias ou no campo da minha cidade, por pessoas que conhecíamos e víamos andar pela rua. Os jornais ofereciam-nos um primeiro contacto com o jogo dos grandes, a rádio trazia-nos a voz e o barulho dos estádios, o Domingo Desportivo era a nossa ponte para chegar, finalmente, ao estádio relvado que, por uma questão de proximidade, encontrava quando ia a Lisboa. Em toda esta construção havia um tempo que, nos nossos dias, não existe mais. Mas as nossas experiências mais fundas continuam a ser aquelas que vivemos de perto. Para quem tem possibilidades, ir ver um jogo a um estádio, fazê-lo num de pequenas dimensões num jogo de divisões secundárias e depois num estádio dos grandes, é e será sempre uma experiência inesquecível.
Literacia cultural no futebol
Não é, no entanto, uma atividade que permita os lucros a que estes grandes clubes estão habituados. Nem podemos esperar que exista uma literacia cultural no futebol em todos os adeptos do mundo, explicando-lhes o encanto de ver um Brighton a roubar pontos a um Manchester City, um Alcorcón a derrotar um Real Madrid num jogo de Taça, um Sassuolo transformar-se numa equipa que dá luta a todas as grandes italianas. Não podemos esperar que isso aconteça porque, no resto do mundo, as equipas locais de cada um não terão nunca a oportunidade de ir a jogo com estes gigantes do futebol mundial, enquanto na Europa, em Espanha, Inglaterra ou Itália, a equipa da tua aldeia pode chegar ao topo do mundo, mesmo que seja de forma efémera. Eu já vi o meu Torreense jogar na Primeira Divisão e já vi a equipa da aldeia onde cresci, a Serra da Vila, fazer um jogo amigável contra os juniores do Torreense, portanto, de alguma maneira, tive essa realidade facilitada.
A literacia cultural no futebol foi aquilo que esteve em causa no início desta semana. O anúncio da Superliga demonstrou que os dirigentes dos principais clubes estão mais focados no lucro do que na cultura. Os adeptos em Inglaterra demonstraram o que é saber o seu peso na história e na realidade do futebol, o que acabou a permitir que treinadores e jogadores da Premier League também denunciassem a criação desta prova. Em Espanha, por exemplo, o silêncio dos adeptos e a forma como treinadores se esquivaram a comentar o tema acabam por servir de prova de como a organização social de um país tem tudo que ver com as possibilidades que uma pessoa tem para exercer o seu direito à indignação.
Mas é neste pote de culturas que temos que perceber que, apesar do recuo da Superliga, a maior parte dos problemas colocados em cima da mesa não foram afastados. A Champions League continua a transformar-se, lentamente, num clube exclusivo, forçando as Ligas nacionais para horários menos comportáveis pelos adeptos, Ligas essas que também se tornam feudos onde o contacto com o jogador, com o quotidiano do clube, a identificação com a comunidade são cada vez menos possíveis. Fazer recuar a Superliga não foi uma vitória se as ideias da Superliga continuarem a fazer o seu caminho sem dar espaço para que manifestemos as nossas preocupações.
De portas bem abertas
Já há alguns anos os movimentos do “Ódio eterno ao futebol moderno” e do “Non-League Football” vêm obrigando a que pensemos sobre o posicionamento que devemos ter perante a organização do futebol no seu negócio a partir da ideia da empresa. Da mesma maneira que a transformação do futebol num espetáculo o levou para uma competição com meios onde acabamos por ter acesso, de forma mais direta, de forma mais barata, a divertimento. A noção de comunidade deve ser um ponto base para a reflexão sobre aquilo que queremos enquanto representação desportiva.
Ao mesmo tempo, compreendendo que o “negócio do futebol” deve continuar a procurar formas de organização que lhe permitam o lucro, esta semana pode ter ficado claro que essa reorganização não se fará sem os adeptos, sem a comunidade que estes organizam, sem a experiência viva do futebol nas bancadas. Um futebol sem adeptos, sem cultura, não será nunca mágico, não será nunca atraente, não será nunca lucrativo. É preciso que aqueles que o organizam percebam que fechar portas não trará nunca a capacidade para chegar a mais gente, de forma mais satisfatória, para todos aqueles que amam este jogo.