A esquerda não tem mel?

O crescimento de órgãos de comunicação social na esfera do centro-direita e o número de comentadores dessa mesma área ideológica na generalidade dos órgãos de informação tem retirado capacidade à esquerda para se pensar e refletir nos espaços onde a análise política é mais massificada. Sendo certo que, para os interessados, é possível encontrar espaços onde essa análise é feita com uma maior dose de contraditório, a verdade é que o discurso geral está hoje cativado à direita, na forma como se ignoram as lógicas internas dos partidos mais à esquerda e se foca a conversa, acima de tudo, numa tendência resultadista.

Revista Cult

Na semana da reunião das direitas na convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL), é particularmente importante perceber essas diferenças. Porque se na reunião do MEL estamos perante um claro projeto de poder, é fácil entender que a lógica de pensamento aí se faça no âmbito dos resultados. É mais importante ganhar as eleições do que propriamente definir a forma como se ganha. E é na procura desse golo que se desenvolvem pontes entre pensamentos e pessoas que, a determinado momento, se fizeram desavindos, assim como se desenvolvem projetos partidários com o intuito de cavalgar números que pareciam fora da equação.

A iliteracia sobre a lógica interna de partidos como o PCP e Bloco de Esquerda é, hoje, uma das grandes falhas da análise política em órgãos de informação. Se bem que a sua forma de organização tende a excluir do espaço público discussões que, noutros partidos, se fazem a céu aberto, isso não deveria chegar para excluir um conhecimento mais profundo das tendências, diferenças e discursos que se multiplicam nesses coletivos. É sempre mais fácil caricaturizar a existência de uma solidez irrealista do que trabalhar no seu conhecimento. Na verdade, cada um destes partidos é feito de realidades díspares, que têm pesos específicos em cada discussão e influenciam, em diferentes momentos, as posições tomadas. 

Essa iliteracia está, também, muito ligada à forma como se olha e estuda a história do século XX em Portugal. A mágoa com que muitos continuam a analisar os acontecimentos nacionais entre 1974 e 1976 leva a isso. Se escutarmos uma parte dos intervenientes no encontro do MEL ou lermos uma parte relevante dos opinadores no espaço público, 74, 75 e 76 foram anos de fogo onde, nos gabinetes, se elaborou uma pérfida estratégia de transformação de uma ditadura noutra ditadura. Analisam a lógica do país através de uma lente afastada (onde estaria boa parte deles nesses anos?), não reconhecendo que, para uma grande fatia da população, esses foram anos de capacitação, de reconhecimento do seu próprio poder para resolver com as suas mãos os problemas que sentiam nos lugares onde viviam. Veja-se o crescimento de pequenas obras públicas participadas pela população para ter essa imagem, mais terra à terra, do que se passou.

Casal de Barbas, no Concelho de Torres Vedras

Mas também é importante que, à esquerda, não se viva apenas no conforto que dá ser do contra. É importante que a vitimização não seja a parte forte do discurso, atacando tantas vezes a comunicação social como um todo, não sabendo diferenciar oportunidades de ameaças e, utilizando uma fórmula popular, deitar o bebé fora com a água do banho. Se é necessário encontrar espaços de reflexão e análise e formas de os comunicar, também é fundamental delinear as prioridades quando é necessário tomar posições. Daí a noção de que, à esquerda, poderá haver mel se não se continuar a forçar divisões entre moderados e radicais, democráticos e não-democráticos. O historial em democracia de cada força à esquerda demonstra bem como essas divisões fazem pouco sentido. Deixar que a visão redutora do centro-direita contamine a forma como a própria esquerda se vê, facilmente se poderá transformar numa recusa a discutir o  fundamental dos tempos futuros.