“No centro do vazio há outra festa” - com Roberto Juarroz no Estádio José Alvalade

Há um poema de Roberto Juarroz que me acompanha há muitos anos. Trago-o comigo porque me parece sempre difícil definir o que estas palavras me dizem, me mostram, que não consigo explicar de uma outra forma. Não o consigo transmitir dentro daquilo que sinto. O poema de Roberto Juarroz é conhecido de muitos e foi assim vertido para português pelo professor Arnaldo Saraiva:

“Às vezes parece

que estamos no centro da festa.

No entanto

no centro da festa não há ninguém.

No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.”*

Ontem estive no Estádio José Alvalade a trabalhar e andei à procura de palavras que explicassem coisas que não sabia como dizer. Reencontrei este poema e agora o poema acompanhar-me-á para me ajudar a explicar outro tipo de coisas. Coisas relacionadas com festas, com pessoas, com vazio. E de como a alegria pode ser imensamente triste. E vice-versa.


Antecipação

Quando se trabalha na comunicação desportiva, a antecipação faz parte do dia-a-dia. Por um lado, pela consciência clara de que vivemos na estrada criada pelo crescente de emoção que um jogo de futebol gera em muita gente. Por outro lado, porque tratando-se de uma contenda, esta não acontece apenas no espaço delimitado do campo de jogo e dos noventa minutos, começa muito antes. 

Essa antecipação é ainda maior, naturalmente, quando falamos de um jogo que decide o campeonato. Que conclui o campeonato, neste caso, por o Sporting assumir a soma de pontos que já não permitirá ninguém ultrapassá-lo. Essa antecipação sentia-se por todo o lado. À entrada de Lisboa, onde vários carros transportavam adeptos para junto do Estádio José Alvalade, nas ruas circundantes ao estádio, onde já se gritava, corria, dançava, bebia e caía mais de duas horas antes do jogo começar. 

Este tipo de eventos convoca também um forte aparato de forças de segurança que nos coloca a nós, comunicação, numa espécie de fronteira. Até bem perto do Estádio, caminhava no meio de adeptos, com pouco ou nada que me diferenciasse deles. À primeira barreira policial, permito-me conversar com um agente de autoridade, que me encaminha para outro, sendo que nesse curto percurso tenho dois polícias de choque a gritarem-me por estar a quebrar a distância de segurança que afastava adeptos do estádio. Não estava. Expliquei-me. Passei.

Já bem junto ao Estádio, enquanto traçava percursos para levantar a acreditação e finalmente entrar, os primeiros sinais de que a festa não estaria tão bem organizada como se faria crer, mas também o difícil trabalho que a polícia e os seguranças já tinham, para conter muita gente inebriada (pelo álcool e pela emoção) que queria aproximar-se para a chegada dos jogadores ao Estádio. 


O centro da festa

Não era, no fim de tarde no José Alvalade, apenas o parecer. Estávamos mesmo no centro da festa. Mas dentro do Estádio, essa corria a diferentes velocidades. A azáfama de muita gente da organização que se via perante essa difícil questão de trabalhar em dia de emoções à flor da pele. A normalidade costumeira de quem está a fazer o seu trabalho de sempre. A ansiedade de quem ainda não sabia como é que se desencadeariam as horas seguintes. 

Estávamos mesmo no centro da festa, mas na bancada de imprensa trabalhava-se como sempre. A testar os sons que vão chegar a casa. A observar o que vai acontecendo no estádio, à procura de algo que seja imprescindível de comunicar lá para casa. A encontrar caras que há muito não se viam - as bancadas vazias têm sido, também, neste mais de um ano desde o início da pandemia, bancadas de imprensa com muito menos gente. Ao todo, ao longo da temporada, fiz cinco jogos em estádios, o que é uma realidade bem diferente da habitual quando se trabalha nesta área.

No entanto, o centro da festa não somos nós. O centro da festa são os jogadores que fazem os exercícios de aquecimento a tentar esquecer que se vão tornar campeões, perante outros tantos que ainda lutam para ficar na Primeira Liga, enquanto lá fora, outra festa se faz, com foguetes, cânticos, emoções. As bancadas estavam vazias, mas, pela primeira vez nestes tempos estranhos, havia ambiente no estádio.


Lugar e memória

O meu pai é sportinguista e fez tudo o que tinha a fazer para me tornar, a mim, sportinguista. Ao mesmo tempo que me levava para a Serra da Vila, onde ele jogava, ou a seguir o Torreense pelo país inteiro, também fui imensas vezes ao antigo Estádio de Alvalade ver os jogos do Sporting. No entanto, aquilo que me encantava mesmo era o jogo. Sempre fui um adepto fraco, fosse de quem fosse, porque facilmente me fixava no que acontecia no jogo, mais do que no resultado. Por isso o prazer de estar perto de um campo, fosse Alvalade, Luz, Restelo ou Tapadinha, por isso as imensas horas a ver futebol internacional, a viver o jogo e o que vem com ele, mais do que a criar uma identificação com apenas certas cores. 

O meu pai é sportinguista e no esforço dele para me tornar o mesmo falhou, mas ainda tem o meu irmão para se dar por satisfeito nesse esforço. Foi deles que me lembrei quando o jogo acabou e ali estava eu, nas bancadas de Alvalade, a ver uma festa que não era minha. Por momentos quase a viver um certo sentimento de culpa, por tanta gente dar tudo para estar ali a ver aquilo e eu, que ali estava, a vivê-lo apenas com a curiosidade de quem assiste, pela primeira vez, a um jogo do título (a trabalhar - já tinha vivido jogos do título com o Torreense, como adepto, e isso foi para mim, realmente, outra coisa). 

Estava, por isso, no centro de uma festa, mas ali tão perto desse centro da festa não estava ninguém, não era um momento de catarse, nem de explosão, nem de nada. Era um momento de memória. Memória futura, por ali ter estado, mas sobretudo memória passada, por me aproximar de gente de quem gosto e que sabia estarem a desfrutar aquele momento de maneira bem mais intensa. E isso, para mim, foi a verdadeira festa. Uma festa triste, silenciosa, tocante, uma festa que me lembra de que temos uma história, um caminho comum, que nos faz aquilo que somos. 


Regresso a Juarroz

Era o poema de Juarroz que eu queria ter dito, para mim, baixinho, ontem à noite. Essas palavras que eu trazia em mim quando voltava a casa, voltando a passar por um mar de gente que esperava aqueles jogadores que eu tinha visto lá dentro, um mar de gente que festejava algo que muitos nunca tinham vivido. Era essa a festa que eu vivia em mim e, por não o saber explicar, no momento, não percebia ainda aquilo que me acontecera. 

A poesia tem destas coisas. Precisa de momentos certos para chegar e perceber-se. Por isso o poema de Roberto Juarroz tem tanto poder. Já foi, ao longo dos tempos, tanta coisa. E hoje aparece-me como algo que ainda não tinha sido - eu ainda não o tinha vivido - mas que já era desde o dia em que tinha sido escrito. Repito-o agora, que me reconcilio com aquilo que sou e a forma como o sinto. Há, realmente, outra festa para ser vivida. Uma festa que mesmo no centro do vazio pode acontecer.


* hífen 7 abril - cadernos semestrais de poesia, dias inúteis, 1992