“Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”
Mário Cesariny de Vasconcelos
A discussão do Orçamento de Estado transformou-se num processo de fragilização de uma ideia de esquerda dialogante que se inaugurou em 2015. Vivendo em democracia, as eleições não devem assustar ninguém. É pelas eleições que aqui chegámos, será também pelas eleições que daqui acabaremos por sair, numa saudável rotação das forças e das ideias no poder. Mas, como defendo sempre, se o processo é mais importante do que o resultado, é do processo que devemos retirar os frutos que nos nascem perante os olhos.
2015 já não mora aqui. A necessidade de transformar a mensagem que o governo passava ao país encontrou, na noite eleitoral de 4 de outubro, no PCP a chave que ligou a ignição de um novo entendimento no poder. Nunca gostei da palavra geringonça para falar do diálogo entre PS, PCP e Bloco de Esquerda, porque esse diálogo era, nada mais, nada menos, do que uma inevitabilidade perante o cenário em que o país se encontrava. Esse entendimento deu frutos e deixou de dar, creio eu, quando em 2019 o Partido Socialista percebeu que não conseguiria novo entendimento em futuras eleições.
Todos falam do país, mas todos gerem as suas decisões de acordo com a sobrevivência eleitoral das respetivas forças. É uma democracia precária, a que se foca demasiado na forma como vai segurar a estrutura de poder e se entrega pouco a reformas que potenciem essa estrutura para o futuro. De alguma maneira, é essa a ideia que teremos que combater. Que a necessidade de diálogo terá que deixar de lado a defesa do resultado para se entender com o futuro do país. Sobretudo num momento em que haverá dinheiro para reformar.
Até quarta-feira, tudo continuará em aberto, mas agora já sabemos que é uma questão de tempo até que esta solução parlamentar acabe por se desfazer. A estabilidade vive-se através da capacidade de cada cidadão ter acesso a habitação, alimentação, formação, emprego e saúde. Na generalidade dos casos, as cores de quem comanda o país não afeta de forma radical essas possibilidades. Será também isso que todos os atores políticos terão que acabar por entender. A democracia tem que continuar a funcionar. Quem se fragilizar no processo, emparedando quem o apoiou, seguramente que não terá os resultados que deseja.