É só a democracia a funcionar


Situações perfeitamente normais, por soarem a habituais no funcionamento daquilo que entendemos como quadro democrático, tocam-nos todos os dias sem provocar grande espanto. 

Marcelo, Presidente da República, a fazer uma pausa nas suas funções para se transformar em Marcelo, comentador de domingo, na procura de condicionar a atividade da Assembleia da República. Fá-lo, como é digno de um bom comentador de generalidades, sem pensar nas consequências dos seus atos. Como o resultado não é o adivinhado, “não estava à espera” - diz ele - deixa-se o país em indefinição porque, afinal, nem todos os partidos estão preparados para ouvir a população. É só a democracia a funcionar. 

O Partido Socialista esteve a uma decisão de ver o seu orçamento passar na generalidade mas não conseguiu marcar o “golo” que seria um acordo com o Partido Comunista Português sobre o Salário Mínimo Nacional. Nas imagens em direto, vimos muita gente a lamentar-se da incapacidade de outra gente para alcançar um alinhamento. Antes de podermos olhar para as repetições, culpou-se o PCP, culpou-se o BE, realinharam-se conversas já com vista ao momento eleitoral que se adivinhava. Só no dia seguinte se percebeu que o afastamento de Pedro Nuno Santos das conversações tinha tudo a ver com o caso. Não foi um golo falhado, foi uma decisão consciente. É a democracia a funcionar. 

Com o principal partido da oposição em guerrilha interna pelo poder percebe-se bem quais os interesses que interessam. Até Cavaco lançou o seu oráculo, intimando a que as eleições sejam só em março próximo, de maneira a que todos os astros se alinhem. O orçamento essencial passa a lateral, porque importa, isso sim, preparar as tropas para o assalto. Já sabemos que haverá um PSD na corrida, só não sabemos qual é. No CDS, mimetizam-se os movimentos, mesmo que agora represente apenas uma farsa do que, no passado, foi tragédia. Porque é isso que interessa a alguns, em momentos determinados, é a democracia a funcionar. 

Mas não é só isto.

Cidadãos condicionados nas suas ações cívicas, presidentes a intervir fora de tom, decisões que não são explicadas de forma a que a população entenda, apego genérico ao poder em detrimento de opções que preparem o país, os concelhos, as cidades, para os desafios de um novo século que é totalmente diferente nas exigências que faz às estruturas e organizações. Acontece em todo o lado e perante o silêncio estratégico de quem sabe que, mais tarde ou mais cedo, também terá lugar à mesa de quem manda, muito maior do que parece. Pode ser que tudo isto não nos leve a viver num estado plenamente democrático. Mas, para aquilo a que nos vamos habituando, é só a democracia a funcionar.