A forma como a minha avó Lúcia via a política mudou durante um jantar. Até esse dia tinha sempre votado à direita, lembro-me de ser criança e dela ter um encanto pelo Lucas Pires, na forma como gostava de o ouvir falar. Era o que fazia sentido, para alguém que tinha nascido numa aldeia, tinha emigrado durante os bons anos e voltado a Portugal para investir o que havia acumulado. É natural que as pessoas tomem decisões a pensar nos seus interesses diretos e pessoais. Durante a maior parte da vida, a generalidade das pessoas não é colocada perante situações em que tenha que pensar a comunidade para lá do seu próprio lugar.
Nesse jantar, não me lembro bem porquê, falava-se de como as coisas eram antes do 25 de abril de 1974. Ela, que tinha vivido na aldeia e agora vivia numa cidade, tendo passado por metrópoles em França e no Canadá, disse-me que não lhe parecia que muito tivesse mudado desses antes para aquele dia. Eu concordei com ela. As pessoas continuavam a viver a sua vida, a ter as suas dificuldades, a olhar, sobretudo, como manter o seu caminho sem grandes problemas. A única diferença, disse-lhe eu, é que eu não estaria aqui. Estaria preso.
Não era preciso ser-se um criminoso para se ir preso antes do 25 de abril de 1974. Expressar uma opinião em público era o suficiente para se ser notado, participar em determinadas associações, ter interesses por política, ler livros, tudo poderia contribuir para o perfil que, uma vez desenhado, levava pessoas para a prisão. Acredito que uma boa parte da população nem sequer desse por isso, adormecida numa ideia de ordem que era uma ilusão criada pela censura. Era apenas um pormenor. Pequeno ou grande, conforme a proximidade - e aqui lembro a grande razão para que a minha outra avó, Julieta, nunca tenha gostado que eu me metesse na política - a lembrança de ver o seu primo, comunista, depois de 30 dias desaparecido, a quem tiveram que serrar as botas para o descalçar.
Não vivo para o passado, vivo sempre para o futuro. Mas não me deixo enganar por quem, tendo tido a oportunidade de conhecer, estudar e pensar sobre as coisas que acontecem no mundo, não perceba que há certos limites que devemos todos ter a capacidade de evitar a aproximação, para que não se fique, de alguma forma, caído do lado de lá.
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Esta semana faleceu o Armando Fernandes, com quem, ao longo da vida, tive o prazer de conversar muitas vezes sobre estas coisas: as vidas que se levaram e que se têm que levar, conforme os regimes onde vivemos. O Armando era muito mais claro na sua forma de ver o mundo do que eu. Que essa inspiração não nos falte nos tempos que temos pela frente.