O Carnaval do outro lado do espelho



Um Carnaval que não se questiona não é propriamente um carnaval. Sendo, historicamente, um período de inversão de realidades, convoca a nossa imaginação a percebermos como poderia ser a vida da nossa comunidade se, por um acaso, tivéssemos a possibilidade de a transformar. Daí que a presença da sátira, da máscara, da liberdade de expressão das diferenças e a tomada das ruas pelo riso sejam marcas com as quais convivemos de perto, sobretudo se formos originários de uma localidade com tradição carnavalesca. 


O Carnaval de Torres Vedras, nas últimas décadas, perdeu essa capacidade de autoquestionamento. Na forma como se foi organizando em circuito fechado, afastando-se das associações locais e da expressão comunitária que esteve na sua origem. Na maneira como se foi industrializando, tornando-se num festival massivo que leva a que se coloque o “objetivo do meio milhão de pessoas” acima da expressão de uma cultura local. Na oportunidade que se perdeu ao estabelecer-se uma Confraria que não se gerou a partir da dinâmica de vários grupos, mas no isolar de uma tendência que acaba por nem sempre ser vista pelos restantes dinamizadores como aquilo que deveria ser - o espaço preferencial de discussão das tradições e do futuro do Carnaval. 


O “monumento” ao Carnaval 2022 é, no fundo, a expressão de boa parte destes problemas. A homenagem à cultura carnavalesca é uma procura da definição dos “vencedores” das tensões que rodeiam o Carnaval de Torres na última década. Acentuando-se a organização centralizada e a delimitação de mitos de uma forma clara. O Carnaval deixou a sátira local, comprometeu-se com a repetição de linguagens e aborda-se, neste ano de 2022, como um serviço de “apoio às iniciativas privadas”, como expressou a Presidente da Câmara na inauguração-que-não-foi-uma-inauguração do passado sábado. 


Por último, a tradição do Carnaval precisa de encontrar um espaço onde se possa olhar no espelho e entender como o seu centenário, que se avizinha, terá que ser uma marca para o futuro e não uma expressão saudosista do passado. O “monumento” deste ano mantém um predomínio exacerbado de masculinindade, remetendo-se a figura feminina para uma expressão objetificada que pouco nos diz do que é a realidade do carnaval dos nossos dias. Hoje, homens e mulheres ocupam o espaço das festividades de forma igualitária e a imagem do Carnaval terá que saber ler a evolução dos tempos e das realidades para se assumir como expressivo para quem o vive em 2022. No dia em que uma mulher assumir o papel do Rei do Carnaval de Torres, estaremos mais perto de o conseguir.