História, heróis e enquadramento


Foi José Pacheco Pereira quem puxou do chuveiro de água fria em pleno colóquio sobre as crises estudantis ocorridas entre 1962 e 1974, no âmbito das comemorações dos cinquenta anos do 25 de abril. No ambiente quase todo feito de memórias e emoções, o historiador lembrou-nos que não se pode fazer história do ponto-de-vista heróico, sendo que a realidade dos factos tem muitos prismas e arestas que raramente compõem um ramalhete apresentável em dias de festa, mas que são elas mesmas parte fundamental dos acontecimentos que devemos recordar. 

Parece estranho que numa sala com tanta gente de vetusta idade isso fosse necessário recordar. E, no entanto, é esse o contínuo esforço a que a nossa mente se dedica. A tentativa de arrumar os factos de tal forma que nos confira um de dois papéis. Ora o de vítima, merecedor de toda a atenção e cuidado do mundo que está obrigado a ver as nossas feridas. Ora de herói, também merecedor de atenção e cuidado do mundo que deveria estar ajoelhado, em jeito de agradecimento, perante nós. Mas a vida é bem mais complexa do que isso.

O esforço que se faz para desenhar um herói tem uma série de condimentos que nos empurram a esquecer as coisas que não terá realizado conforme o cânone que estamos, ao mesmo tempo, a preparar para a sua sustentação. É como se os factos começassem, desde cedo, a ter que se adaptar à criação do herói, não se esperando que essa capacidade diferenciadora de um ou de um grupo de humanos, se revele em todo o seu complexo esplendor. Em entrevista à Philosophie Magazine, Joelle Zask confessa “um gosto pela teorização que tento enquadrar para não delirar”. Uma confissão que bem se poderia tornar um credo para que houvesse cuidado na forma como promovemos os nossos heróis particulares.