Propaganda e centros de informação no tratamento do conflito


Sabemos onde as bombas estão a rebentar, mas será que conhecemos todos os territórios onde a guerra está a ser disputada, e há quanto tempo? O dia 24 de fevereiro fica marcado como o momento em que o conflito entre Ucrânia e Rússia se transformou de forma radical, com a invasão da Ucrânia em várias frentes por parte do exército russo. Aliás, ao ouvir o excelente podcast “War on Truth” da jornalista da BBC Marianna Spring, ficamos a perceber que mesmo para cidadãos ucranianos, só mesmo o primeiro rebentamento de um míssil no seu território os alertou para o que estava, realmente, a acontecer. 


Os antecedentes são parte do conflito

Ao mesmo tempo, os sinais de tensão entre um grande país com tentações imperialistas e um país na sua fronteira com ideias diferentes sobre o seu futuro sempre fizeram parte da relação de vizinhança entre Ucrânia e Rússia. Vendo, graças aos arquivos da RTP disponíveis online, uma reportagem do jornalista Carlos Fino em Kiev, corria o ano de 1994, somos recolocados perante a génese do problema. Há 30 anos, já a existência de uma Ucrânia independente era colocada em causa, já as tensões entre russófilos e nacionalistas eram evidentes, com uma correlação de forças diferente e num período onde a Europa ainda olhava para a questão como um problema longínquo.

A guerra no Donbass iniciou-se em 2014, mas num conflito em que ambas as partes pareciam más. Fosse pelo envolvimento de forças de extrema-direita e do gigantesco problema de corrupção no estado ucraniano, fosse pelos claros sinais de envolvimento da Rússia no extremar das posições. O número de mortos e feridos, a destruição de parte do território ucraniano e a ocupação da Crimeia falam por si. Ainda assim, tudo era ainda visto como algo distante. A Ucrânia como terra de ninguém (de neutralidade frágil) ia ficando para trás, ainda que de forma velada, enquanto Putin conseguia distribuir a sua influência através de grandes contratos de fornecimento de energia com a União Europeia, uma diplomacia desportiva com elevados patrocínios e a realização de um Mundial de Futebol e uns Jogos Olímpicos de Inverno, o envolvimento mais ou menos claro com forças que procuravam desestabilizar politicamente os seus países rivais.


A propaganda no seu labirinto

Quando a 24 de fevereiro a Rússia iniciou a invasão à Ucrânia, os dados começaram a mudar. Empurrado para o papel de vítima, o Presidente ucraniano conseguiu transformar esse impacto e lançar uma campanha de comunicação que mudou a forma como olhamos um dos lados do conflito. Volodymyr Zelensky vestiu o papel de líder, mas a forma como se posiciona nas redes sociais, como alguém que acompanha os acontecimentos, define o tom diplomático, mas não aparece de armas nas mãos, acabam por acomodar-se na perfeição às ambições e expetativas ocidentais, de olhar um político como um homem normal que está preparado para os momentos de exigência. Ao mesmo tempo, nos países ocidentais, o conflito tem sido visto quase sempre do ponto-de-vista das imagens recolhidas do lado ucraniano, o que se acentuou com as mudanças legais impostas aos jornalistas em território russo.

A Rússia, com anos de comunicação da sua força através de uma informação bastante controlada, aparições muito encenadas e a caracterização de Vladimir Putin como um homem poderoso, já entrou nessa guerra de propaganda no mundo ocidental a perder. Apesar de ter conseguido os seus intentos na forma como apoiou Donald Trump, o Brexit ou a chegada ao governo de Matteo Salvini, os seus esforços de mudança cultural no ocidente ficaram sempre pelo caminho. Todas essas figuras, Trump, Farage, Salvini, Bolsonaro, por muito que toquem o poder, não deixam de ser vistos como elementos desfasados da realidade cultural. Na Europa, a imagem de um Putin em tronco nu no meio de um ambiente selvagem revela mais a sua fragilidade do que a sua suposta força. 


Um mundo com diferentes centros de informação

Ainda assim, o mundo não vê as mesmas coisas da mesma forma. Esta análise da conquista da guerra da comunicação por parte dos ucranianos pode estar a concretizar-se na Europa e na América do Norte, mas outros dados devem fazer-nos pensar. Enquanto internamente, os russos têm hoje uma enorme dificuldade de acesso a informação que contrarie a narrativa governamental, o analista Carl Miller chama-nos a atenção para o facto da propaganda pró-russa ter uma enorme recetividade nos países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bem como em largos territórios dos continentes africano e asiático. A forma como entendemos o conflito é nossa, mas o mundo é composto por análises cada vez mais variadas da mesma situação. E se nunca na Europa se deu muito valor à forma como outros centros de informação têm alcançam largas camadas da população mundial, é exatamente esse factor que poderá pesar no futuro entendimento das relações internacionais.  

Voltamos ao início. Sabemos onde as bombas estão a rebentar, vemos um país a ser destruído e a sua população a fugir, a ser ferida, a morrer. Mas será que temos consciência da forma como o centro do conflito é apenas uma parte do mesmo, aquele que nos atinge de forma emocional através das imagens que nos chegam pela televisão e pelas redes sociais? Há uma necessidade de razão na forma como pesamos todos os acontecimentos, mesmo aqueles que são arrumados pela propaganda. E quando nos congratulamos com vitórias na comunicação, não podemos ignorar que a realidade continua a correr, por baixo da aparência, alimentando riscos de maior conflituosidade e violência nos lugares onde hoje a vida segue normal, mas amanhã tudo poderá mudar.