25.04.2022 - folha de um diário


25.04.2022, 20 horas
. Parado num semáforo numa rua de Lisboa, acabado de sair do trabalho, vejo uma pequena mota, com um adulto a conduzir, consigo, uma criança, de oito ou nove anos, levando às costas uma mala de transporte de comida da UBER. No dia da Liberdade, aquela criança saiu com o pai para o trabalho e carregou-lhe a mochila, num trabalho sem direitos ou segurança, um trabalho precário, dependente das ordens de pedido que chegam, por via digital, a conta-gotas. No dia da Liberdade, este choque com uma realidade que nos escapa, escondida atrás das vidas que não conhecemos para além de uma app de telemóvel, transporta-nos para tudo aquilo que ainda falta fazer no nosso país. 

25.04.2022, manhã. Na Assembleia da República, José Soeiro perguntava “para que esta sessão aconteça, para que a sala esteja pronta para a solenidade, há centenas de pessoas nos bastidores da democracia. Vemo-las mesmo?”. Entendendo pelas centenas de discursos repetidos um pouco por todas as sessões solenes realizadas em Assembleias Municipais pelo país, não. Os discursos de Abril foram tomados pelas tricas locais, pelas releituras dos acontecimentos que verdadeiramente importaram em 1974, pela ausência de uma reflexão clara sobre o papel de uma democracia. Num documentário que vi, pela noite, na RTP Play, Stella Piteira Santos sublinhava, numa entrevista de 2009, que o país não era nada daquilo que ela ambicionara poder ser, mas ainda tínhamos a “Liberdade”. Talvez não todos.

25.04.2022, 15 horas. Quem nunca esteve na Avenida da Liberdade, em Lisboa, numa tarde de 25 de Abril, não sabe bem o que lá acontece. Sobretudo nos últimos anos, a Avenida foi tomada por uma geração mais jovem, que não entende o 25 de Abril como um lugar de memória, mas como um lugar de presente. A expressão do prazer da Liberdade, de caminhar na rua, independentemente do rumo do desfile, leva a que pela rua abaixo, até aos Restauradores, milhares de pessoas se passeiem já, de cravo na mão, expressando a sua pertença a um país que se conquistou a partir de 1974. É por ser algo singular que esta desideologização dos festejos do Dia da Liberdade nos coloca desafios exigentes. Por um lado, transportando o positivo de transformar a Liberdade num espaço de diálogo. Por outro, conferindo uma expressão de privilégio ao estar ali, nem sempre consciente de que a individualidade condiciona o coletivo.

O 25 de Abril do futuro deverá aproveitar todas estas dinâmicas. Primeiro, confrontando-se com as metas colocadas por um período revolucionário que permitiu o sonho de uma sociedade mais justa, compreendendo todos os caminhos que ainda estão por fazer para a concretizar. Em segundo lugar, chamando a si todos aqueles que ainda ficam de fora (ou ficaram, entretanto, excluídos) do círculo que pode festejar, com consciência e compreensão, aquilo que Abril nos permitiu. Em terceiro lugar. libertando-nos de amarras que continuam a impedir-nos de compreender que a vida democrática se faz em diálogo, em comunidade, compreendendo um processo que nos conjuga como parte e não como todo. Desafios simples, mas também complexos, aos quais todos somos chamados para cooperar.