Num momento em que as possibilidades de debater ideias se desfazem com um estalar de dedos, dada a pressa com que se comentam títulos ou frases isoladas, caindo no torpor de definir numa palavra uma complexidade de assuntos, ler o artigo “Os bons, os maus e o que podemos fazer”, publicado pelo Tiago Mota Saraiva no Expresso, é uma oportunidade clara para tentar assentar os pontos-cardeais de uma conversa que é necessária fazer. De forma límpida, o Tiago resume um conjunto de posições muito próximas ao que o PCP tem vindo a declarar ao longo destas últimas semanas, o que me merece atenção, reflexão e discórdia em alguns momentos.
Os pontos fundamentais: oposição a Putin, a situação da Ucrânia e o território enquanto elemento não beligerante
Comecemos por um ponto fundamental em todo este espaço de discussão aberto pela invasão da Ucrânia pela Rússia. Aquilo que o Tiago chama de “oposição estrutural a Putin”. É um ponto-de-partida importante, porque caracteriza uma das crises das democracias capitalistas, que tendem a definir os seus companheiros pelas possibilidades económico-financeiras que estes lhes abrem e não pelos seus posicionamentos políticos. A oposição estrutural a Putin representa um contínuo entendimento de que o prolongado tempo de liderança de Vladimir Putin na Federação Russa tem trazido um decréscimo de liberdades, uma concentração autocrática de poderes e uma enorme carência das possibilidades que o povo russo têm para definir o seu futuro. Essa oposição estrutural não se aligeirou, nem na forma como o dinheiro russo foi sendo aceite como natural em diversas áreas de negócio, nem na maneira como vários dirigentes europeus, agora seus opositores, estabeleceram acordos comerciais com Putin. A oposição estrutural a Putin faz toda a diferença porque não encara as suas decisões dos últimos tempos como uma deriva de loucura, antes compreende um caminho que foi sendo feito mesmo quando Putin era visto como um parceiro da grande Europa.
Outro ponto que é também fundamental passa pela análise e as preocupações que a situação política na Ucrânia foi levantando ao longo dos anos. É bom assinalar que, por dimensão, importância geoestratégica e forma como o seu território não deixou de ser discutido desde a declaração da independência em 1991, a Ucrânia acabou por ser um dos países com maiores dificuldades para fazer uma transição tranquila para a democracia, acabando ferida nas desvantagens que tudo isso lhe trouxe em comparação com alguns países vizinhos, que beneficiam hoje de muito melhores condições de vida. Por outro lado, o contínuo de conflitos no seu território levaram a um conjunto de situações preocupantes, onde a liderança política estava claramente aquém no controlo do país. Os diversos relatórios que analisaram milícias militares e influências de grupos de extrema-direita em parte desses conflitos são claros sinais de um país em convulsão. O que, por exercício lógico, não deveria colocar as duas supostas partes deste conflito, Rússia e Ucrânia, no mesmo plano. Aqui surge uma primeira divergência com a posição do Tiago Mota Saraiva. Se entendemos o conflito como mais alargado no espaço e no tempo, temos que compreender o território ucraniano como o local onde a conflito acontece, não parte da sua natureza. Um argumento que, creio, acabará por influenciar a discussão que se segue.
As partes do conflito e a presença do argumento pacifista
Creio que é fácil de entender que qualquer guerra só termina com negociação. O que está em causa neste momento do conflito é a forma como essa negociação será feita. Não só as condições em que se apresentarão cada uma das partes, mas sobretudo que partes serão essas. Continuando no entendimento do conflito como um acontecimento que envolve mais do que a Rússia e a Ucrânia, a forma como se encara a situação de guerra tem que ser diferente - e aqui creio que são evidentes os méritos e as fragilidades da posição do Tiago e do PCP. A solução de não auxiliar a Ucrânia no seu esforço de guerra far-nos-ia sair desse entendimento lógico. Seria como aceitar que a guerra se faz entre duas partes que não merecem a intervenção de elementos externos. Mas se convivemos com um momento de análise que entende que a guerra se faz entre blocos imperialistas, então há que focar o discurso noutro ponto que ganha evidência. A Ucrânia é vítima de uma luta pelo controlo das fronteiras da Europa, que coloca em causa o posicionamento da União Europeia e a influência que os Estados Unidos têm sobre ela, que está dentro de um mapa de aspirações da Federação Russa a retomar um território de influência semelhante ao que detinha a URSS com o Pacto de Varsóvia e que ainda choca com a necessidade de conquista de estatuto da Turquia como uma potência regional que pertence à NATO mas que detém uma agenda própria.
Nesta linha de pensamento entra a crítica à NATO e aos seus objetivos, entra a oposição estrutural ao posicionamento política da Federação Russa, entra, até, a aspiração à desmilitarização de todo o mundo. Tem é que saber ler a situação interna ucraniana de um outro modo que permita que a discussão se faça sempre debaixo da mesma rede de argumento e não nos obrigue a saltos mentais que colocam diferentes partes no mesmo conflito, com diferentes graus de importância, caso estejamos a falar de apoio internacional, de abusos no quadro de guerra ou de alguma outra coisa. Neste enquadramento, ficam também mais claro os eventuais ganhos dos EUA com um conflito que reforça o seu papel na Europa, através da NATO, e fragiliza a posição da Rússia no espaço europeu. Ao mesmo tempo, é um conflito que oferece ganhos financeiros a todas as partes que negoceiam armas, petróleo, ou que jogam com os valores dos cereais. Mas também é um conflito que coloca em cheque uma ordem mundial que, dependendo do que decorrer de uma situação de cada vez maior tensão, pode acabar por escapar aos desejos dos EUA. A complexidade do que está aqui em causa obriga-nos a continuar a aprofundar os efeitos de cada posição tomada por todos aqueles que, de fora (e aqui se inclui a China e a Índia, acima de tudo) assistem com curiosidade aos eventos.
Problemas de posicionamento e mudança dos factos da análise
O posicionamento do PCP tem sofrido, desde o dia 24 de fevereiro, de alguns problemas de análise que cresceram para se tornarem enormes elefantes na sala ao longo das semanas que se seguiram. Em primeiro lugar, o facto de concentrar os problemas do imperialismo no binómio EUA/NATO, o que lhe retira capacidade de posicionar as ambições da Federação Russa e da China ao mesmo nível. Quando o imperialismo se combate com imperialismo, é necessário entender que nenhuma das partes oferecerá uma solução benéfica para as populações. E quando mais depressa isso ficar claro, mais depressa se poderão resolver outros dos entraves de análise internacional que condicionam decisões no seio do partido. O segundo problema tem que ver com uma resistência à forma como se joga no mundo da comunicação. Aquilo que o texto do Tiago Mota Saraiva nos permite é entender de forma não belicosa um posicionamento que vários dirigentes têm tomado com um claro aparato emocional, fruto da ideia da exclusão do seu discurso do debate político. O que acaba demonstrado que o problema não está nas ideias, mas na forma como se pretende fazer o exercício de comunicação vai sendo desmitificado pelas presenças de Bernardino Soares, Nuno Ramos de Almeida ou do próprio Tiago Mota Saraiva em vários espaços televisivos.
A invasão da Ucrânia pela Rússia criou um novo momento de análise que, ainda que fortemente enriquecido por um conhecimento profundo das situações que até ele conduziram, é um dado novo demasiado relevante para ser entendido como um simples efeito colateral. As várias chamadas de atenção sobre a situação política na Ucrânia perdem peso quando percebemos que todos os problemas ali assinalados são exatamente semelhantes aos que podem ser vistos do lado da Federação Russa (as oligarquias, a presença da extrema-direita, os mercenários, os abusos), com a agravante inquestionável de que quem invade é sempre pior do que quem é invadido. O entendimento, ainda, da Ucrânia como o território do conflito e não como um elemento de plena pertença ao conflito, obriga também a toda a uma revisão de discurso que permite um diferente entendimento das posições tomadas - e por isso se encontra facilmente em todo o mundo quem pense, discuta e discorde de posições tomadas pelos EUA e pela União Europeia nesta guerra, sem que isso o transforme, imediatamente, num apoiante do outro lado. Que, em Portugal, quer entre aqueles que agora vestem as cores da Ucrânia, quer entre aqueles que as recusam envergar, continue a existir quem prefira causar choque do que discutir ideias, é um problema que diz muito mais de quem grita do que de quem o escuta.