Rodinhas na bicicleta da nossa interpretação


A transformação da análise numa luta de bons contra os maus nunca permitiu, tomada como princípio, que se chegasse a alguma conclusão produtiva. Já vimos isto acontecer em várias áreas. Na minha experiência pessoal, passei por esta situação na análise do futebol. Conjugam-se barricadas para se defender o jogo conforme X e o jogo conforme Z e afundam-se argumentos num vazio que não leva a lado nenhum. Na prática, as coisas do mundo não se conformam a análises que tendem a olhar para os acontecimentos apenas de um lado.

Causou alguma celeuma que o Público tivesse publicado um trabalho de reportagem do jornalista Bruno Amaral de Carvalho, desde Donbass. Estando do lado russo, oferece-nos uma visão das coisas diferente daquela que, maioritariamente, recebemos em Portugal. A celeuma só me é surpreendente porque muitos daqueles que se queixam do tom da escrita de Amaral de Carvalho parecem conviver sorridentemente com o tom oposto. Um pouco como alguém que tem os pés em areia movediça a apontar para a forma como o seu colega do lado se enterra. 

Parte-se demasiadas vezes do princípio que os leitores não sabem o que estão a ler, que não são capazes de pensar pela própria cabeça. Ao longo das últimas décadas, isso tem levado a que cada vez menos gente leia trabalhos de jornalistas que publicam em jornais ou sites de referência, trocando-os por súmulas que aparecem aqui ou ali nas redes sociais. A forma como abordamos quem nos escuta é fundamental para podermos ser ouvidos. A diversidade na maneira como se utilizam registos de informação e análise é uma riqueza que nos fortalece a todos. 

É inevitável que cada um de nós possa assumir uma simpatia por um dos lados de uma guerra. Felizmente, a maioria de nós tende a assumi-la por aqueles que estão do lado que mais sofre, o dos civis que vêem a sua vida interrompida por uma invasão sem sentido. A transmissão dos argumentos de quem invade, ao fim de semanas de guerra, não é um esforço de contra-informação. É uma demonstração clara da sua fragilidade, da sua pouca adesão à realidade, da falta de noção com que se tomam decisões que ferem a vida de milhões. Escutar o outro lado é a melhor forma de percebermos a maldade das decisões de Putin, muito melhor do que sermos nós a dizer que Putin é mau.

O espaço da comunicação social deve enquadrar essa diversidade de vozes. Ao fazê-lo, esforço que tem sido mantido também nas suas páginas de opinião, o Público presta um serviço que a informação deve prestar. O de incomodar quem lê. Quando somos incomodados na nossa leitura, somos levados a procurar mais, a escutar mais, a entender melhor. Somos forçados a informarmo-nos melhor sobre a forma como as coisas acontecem. Enquanto sociedade, ficamos muito mais reforçados quando somos capazes de entender os diferentes prismas da verdade. E as etiquetas de pró-A ou pró-B servem muito pouco para lá chegarmos. Lendo e entendendo, percebemos muito bem o tom que cada jornalista ou analista pretende defender. Não precisamos de rodinhas na bicicleta da nossa interpretação.