Um caminho demasiado longo

Fotografia de Ozias Filho

Se o trabalho de reconhecimento da nossa identidade nunca está terminado, a nossa vontade para a questionar corre o risco de cansar-se ao longo do caminho. Estamos expostos a uma constante reformulação das condições da nossa existência intelectual, sobretudo num tempo onde se formulam acontecimentos considerados imprevisíveis. Agarrarmo-nos às certezas que havíamos formulado no passado é uma forma de se resistir aos balanços das marés. Mas navegam melhor os corpos que têm condições para se adaptar às ondas. 

Tenho percorrido o longo caminho de tentar compreender e enquadrar as decisões e os posicionamentos que, sobre as coisas, fui adoptando ao longo da vida. Fazê-lo é estar, de forma constante, a chocar com quem me é próximo. O tempo dá-nos uma clareza sobre as coisas que o momento em que elas acontecem nem sempre permite. Mas também nos oferece uma frieza de análise que pode castigar quem não se oferece ao mesmo exercício. Podemos ser culpados por não deixarmos certas coisas para trás. Podemos viver com a culpa de termos deixado certas coisas para trás. Uma vez mais, temos que escolher. 

Sempre me foi difícil explicar como não me defino por um perfil fácil de identificar. Como esse trabalho de identidade sempre foi mais uma afirmação pela diversidade do que a procura de pertença a um grupo. Quem não compreende que há um caminho entre a política e o desporto, quem não entende que existe uma confluência entre a cultura urbana e a vida na aldeia, tende a perder-se de mim. De forma geral, as pessoas tendem a procurar as linhas que as estabelecem como parte de um todo. Eu creio que a forma como continuadamente me afirmei pela não-pertença faz parte da minha necessidade de estar sempre em adaptação às coisas que me acontecem. 

O trabalho de construir pontes é desgastante. Mas sempre, desde muito cedo, estive no lugar de tentar compreender o outro para me compreender melhor a mim. Procurar nas expressões culturais da oposição o lado de lá para encontrar, quase sempre, as mesmas dúvidas, os mesmos medos, as mesmas ambições. O mundo em que cresci e aquele em que vivo a vida adulta transforma-se para criar muros onde estas pontes são mais difíceis de fazer. A Guerra nos Balcãs. O Ataque às Torres Gémeas e as reações que despoletou. O crescimento da extrema-direita. A pandemia. A Guerra na Ucrânia. Não são assim tantos anos para podermos pensar que as coisas não estão intimamente ligadas à forma como vivemos as nossas vidas. 

Cresci num mundo onde se conheciam as coisas pelas conversas no café. Rapidamente tive a oportunidade de contactar com o mundo de outra forma, e essa abertura é essencial para compreender como as cabeças se transformam brutalmente, quando a nossa porta da rua dá para os vizinhos que se encontram no café ou para todos aqueles que, no mundo, partilham alguns dos nossos interesses. Ainda assim, com todo o mundo para se descobrir, a humanidade prefere esconder-se nos seus pequenos territórios de compreensão interna e incompreensão externa. Cansarmo-nos é um resultado normal de uma vida que se transforma em confronto. Não desistir é uma forma fundamental para não nos perdermos no caminho demasiado longo que nos leva até nós.