Um problema formal na discussão


Não existe debate se, em ambos os lados da mesa, se decalcam os problemas formais em que opiniões diferentes se baseiam. Contrariar uma opinião não se trata de utilizar uma história diferente, nem de abarcar igual número de falsos argumentos até se poder vencer a discussão. Se há momento em que o debate necessita de quem, para contrariar a tendência de discurso vigente, tenha a capacidade de organizar o seu pensamento numa nova grelha de análise, o de uma guerra parece-me o momento de máxima necessidade.

É a própria realidade que nos impõe uma nova rede de análise que não se coaduna com velhos posicionamentos, preconceitos recessos ou medos infundados. Começando pelo fim. Muitas vezes é o medo que nos leva a embarcar numa lógica de não questionamento, o medo do ridículo, por estarmos a ver as coisas de um ponto-de-vista de que o discurso dominante se desvia. Cai-se, por isso, em preconceitos ultrapassados, regurgitando princípios que já não encaixam na riqueza de contexto que a sociedade de informação nos permite alcançar. Finalmente, os velhos posicionamentos que se tendem a manter acabam por nos afastar de uma conversa que poderia ser realmente esclarecedora. 

Não é por considerarmos que o atual conflito entre Rússia e Ucrânia é fruto de uma larga história que envolve, não só os dois países, mas toda a realidade geopolítica onde se foram inserindo, que a nossa grelha de análise deve recuar para se posicionar numa lógica de Guerra Fria. Os dois lados que queremos abordar no nosso questionamento não precisam de ser colocados como o “nosso” e o dos “outros”, quando esse posicionamento nos levará, seguramente, a ignorar os pontos onde as realidades se tocam e, de forma inevitável, chocam. 

Vídeo com excerto da presença do Major General Carlos Branco na CNN

Num caso prático deste fim-de-semana, quando o Major General Carlos Branco expressa a sua opinião sobre acontecimentos que tocam a sua área de especialidade, está a fazer um exercício de liberdade que devemos ser capazes de abarcar como uma parte da totalidade das visões que interessam sobre determinado evento. Mas quando o mesmo Major General utiliza argumentos falaciosos sobre “imagens de cadáveres que se movimentam”, argumentos esses que foram, de forma clara e inequívoca, desfeitos por várias análises das imagens de Bucha, então está a cometer o erro básico onde vejo muita gente cair: o de querer debater com a capacidade de choque com que o seu adversário brandiu o argumento prévio. 

Há que ser melhor do que aquele que se quer contrariar. Ao desperdiçar a oportunidade de transportar a discussão para o campo da análise mais limpa, requerendo uma aceitável discussão dos acontecimentos em campo próprio e alimentando uma expetativa de clarificação total sobre a origem dos mesmos, acaba por se equiparar, de forma menor, a tantos outros que, por estas semanas, se limitam a repetir ideias feitas sem espaço para reflexão. É dessa forma que se tem abandonado a possibilidade de debate. Porque mais do que expressar opiniões, o que é aceitável e desejável, expressam-se pertenças a lados do conflito, o que torna quem o faz uma parte do próprio conflito que vivemos. 

A tragédia continua a abater-se de forma crua sobre a população ucraniana. As futuras conclusões sobre o que terá acontecido em Bucha não apaga o que já é evidente: inocentes foram torturados e mortos de forma inaceitável. Mas esta não é a melhor altura para continuarmos a viver a falácia providencialista de que existe alguém que está mais certo do que os outros. Não é a melhor altura para colocar o campo de debate na luta pela verdade. Não é, seguramente, o momento de nos perdermos em discussões surdas, onde facilmente se perde o rumo e o alcance positivo da disponibilidade para nos entendermos melhor uns aos outros. Por agora, a única certeza deve ser a de que não estamos certos de nada. E, mesmo assim, não abdicar da confiança de seguir na descoberta. Leve-nos ela onde tiver que levar.