Por uma história popular do Carnaval de Torres


O convite da Direção da Associação de Ministros e Matrafonas para colaborar no livro alusivo à sua história e presença no Centenário do Carnaval, lançado já em janeiro, permitiu-me uma enriquecedora experiência de vida carnavalesca. Associamos naturalmente o Carnaval aos dias de festa que tomam Torres Vedras, mas o seu significado tem lugar presente no pensar da nossa cidade enquanto território e na história do nosso concelho. O Carnaval e a sua historiografia não me eram estranhos, mas entregar-me a este processo de construção de um livro, de contacto com tantas pessoas que fazem o Carnaval e do tocar das memórias destes abriu uma linha de reflexão que pretendo aqui explorar.

Tem havido um forte investimento da parte do nosso Município no engrandecimento dos eventos carnavalescos, uma estratégia de posicionamento desta festa como, mais do que um eixo de cultura local, um momento de atração de pessoas ao nosso concelho. Essa estratégia conduziu, através de investimento e de opções de gestão e organização, ao crescimento da marca do Carnaval, a sua distinção pela UNESCO, o aumento do impacto na economia local. Ao mesmo tempo, criou-se o Centro de Artes e Criatividade, um espaço dedicado a criar novas linhas de existência para o que é este Carnaval do Século XXI com o qual convivemos hoje. Todas estas opções delinearam caminhos sobre o futuro do Carnaval que, não sendo impossíveis de reverter, estão estruturados e conduzirão a realidade do mesmo para as próximas décadas. 

Ao longo deste processo, o Carnaval de Torres também perdeu algumas das suas referências. O caráter local e tradicional que se podem ver nalgumas fotos do livro agora publicado, a maneira como determinados locais típicos do nosso Carnaval se perderam e apagaram pela imposição do festival carnavalesco nas ruas, a forma como a tradição se foi consumindo e fechando, levam a que o Carnaval tenha mais exibição organizada e menos caráter popular. Essas perdas inserem-se numa política de controlo e organização que, muitos me dirão - e não lhes retirarei toda a razão - é essencial para que o Carnaval tenha futuro. Mas também são operações que significam um corte na história do Carnaval, uma descontinuidade que permite futuro, mas que ao fazer escolhas, óbvias e assumidas, merece uma constante reflexão e discussão. 

Precisamos de trabalhar mais na história do nosso Carnaval. Porque de tudo aquilo que foi necessário ler e pesquisar, contactar e observar entre as forças vivas do Carnaval de Torres, fica claro que a sua história está longe de ter um tratamento que nos permita uma ideia completa e global da evolução do Carnaval ao longo dos anos, bem como pode colocar em causa a ideia que terão do Carnaval as gerações futuras. É necessário encontrar melhores leituras para a conjugação dos elementos tradicionais do nosso Carnaval, na forma como surgiram, promovendo-se um cruzamento de fontes junto de figuras que ainda detém essa experiência e conhecimento. O trabalho mais destacado e apoiado tem levado a que a história do Carnaval seja uma história da organização do mesmo, ficando de fora a riqueza humana e patrimonial do Carnaval de Torres, exatamente aquela que desde sempre procurou escapar de qualquer tipo de organização. 

Sobre essa história das pessoas do Carnaval, há mesmo muito por fazer. Porque enquanto história popular, é fundamental que sejam reconhecidas as pessoas que fazem e vivem o Carnaval desde sempre, o seu contributo para uma tradição que tem muito mais a ver com as pessoas de Torres Vedras que o viveram e vivem do que com a forma como este é organizado. Essa história popular carece de um mapeamento dos lugares e das associações que fizeram o Carnaval crescer ao longo destes cem anos, bem como uma visão crítica mais alargada sobre como as decisões de organização impactam na vivência do Carnaval pelos foliões. A necessidade desta história popular do Carnaval de Torres reforça-se pela ideia de que existem vários Carnavais de Torres a contribuir para este marco do nosso concelho. Essas diferenças devem ser recolhidas, reconhecidas e analisadas pela história. Isto não é, sublinho, uma crítica ao trabalho realizado pelo Município ao longo dos anos. Porque a responsabilidade não pode estar apenas do lado de quem tem feito o que fez pela vida do nosso Carnaval. 

Esta necessidade é, sobretudo, um apelo a um entendimento da importância das pessoas na existência do Carnaval. Ao longo deste ano de trabalho apercebi-me de que pessoas com papéis enormes na vida do nosso Carnaval não se reconhecem como tal e menorizam as suas ações de uma maneira que não é fiel ao peso que tiveram e têm. Por outro lado, também é evidente que muitos guardam memória ou recordações de tantas outras figuras que não tiveram ainda o tratamento que merecem no registo do seu contributo para o Carnaval. Esse trabalho precisa que as pessoas se reconheçam na sua força e preponderância, na importância do seu papel na história, de historiadores que com eles contactem e de fontes de financiamento que não tenham preconceitos em relação ao que resultar desse olhar sobre o passado. Uma história popular do Carnaval de Torres é a única forma de garantirmos que o Carnaval continuará a ser aquilo que é. O que, apesar do enorme encanto que o evento carnavalesco oferece, não é a base exclusiva daquilo que deve ser o seu significado para a cultura da nossa terra. 

Este trabalho de memória não é apenas um trabalho que se deva focar no passado, mas também um trabalho do presente, para todos aqueles que vivem o Carnaval. Falo desde o mais tradicional folião até a quem está inserido em grupos carnavalescos, dos informais aos oficiais. É preciso que cada um de nós possa contar a sua história, porque é que estão no Carnaval, nas associações, quem é que os inspirou ou convidou, quais foram os bailes a que foram e os bares que frequentam, os episódios que destacam como memoráveis. Todas estas pequenas histórias que enriquecem a diversidade cultural do nosso Carnaval são merecedoras de registo e tratamento. Para que a construção da memória do Carnaval seja fiel ao espirito que nos leva à rua e ao corso todos os anos. 


Artigo publicado no Jornal Badaladas a 26 de janeiro de 2024