Aos 45 anos de idade, habitante do concelho de Torres Vedras, não há uma ideia vinda da boca de André Ventura que me possa chocar. Curiosamente o Ventura que andou por aqui a estudar no Seminário e Externato de Penafirme por onde passaram tantos amigos e tanta gente que reconheço como brilhante. Mas relembro sempre Alexandre O’Neill, naqueles versos que parecem escritos para esta ocasião. Este tipo de ideias têm-me “cavalgado” ao longo de toda a vida, por proximidade com tantos que as partilham, “mas nem por isso me pôs a pensar” como elas. Porque como bem constata o poeta, “uma coisa pensa o cavalo, outra quem está a montá-lo”.
Que muita gente se deixe montar também não é surpresa quando se vive numa pequena cidade, onde todas as veias da sociedade estão à mostra, familiares e caseiras, como algo que podemos observar quando nos sentamos no sofá da nossa sala. Daqui é bem fácil perceber como se confundem cargos com direitos, sucessos com traições, elevação com descaramento, verdade com encobrimento. Se andaste na escola com o vereador e o polícia, se bebeste copos com o doutor e o cadastrado, se te cruzas na rua com a professora e desempregado, percebes bem que nada é assim tão definido como a teoria procura impor. A vida de cada um é mesmo aquilo que é, uma amálgama que, conforme o momento, segue por uma linha de água e tanto serve para regar o alimento como para viciar o ecossistema.
Por não ser surpresa, por não ser choque, vale a pena ouvir o discurso de André Ventura no seu momento de vitória. Ventura, sabe-o bem, é um exímio bailarino sobre o vazio. Defendendo hoje uma coisa e amanhã outra, atacando aqueles que defendia e o seu contrário logo depois, a estrutura do Chega percebeu antes de toda a gente que já ninguém lê um livro inteiro, ouve um álbum até ao fim, compra, sequer, o jornal. Daí que todos os seus atos sejam únicos - recortados ao sabor de um público definido junto do algoritmo das redes sociais, conseguiu que mais de um milhão de pessoas votassem neles por razões muitíssimo diferentes, boa parte delas contraditórias até. Tenho para mim que não é assim que se faz política, mas se o objetivo era ganhar uma corrida, então soube fazê-lo como mais ninguém.
Essa é, aliás, a grande questão deste 10 de março de um certo desencanto para a democracia e de grande êxtase para uma direita que vem cavalgando eleições um pouco por toda a Europa. Estamos a assistir ao mercado a funcionar. A informação desvaneceu-se na audiência, as referências desfizeram-se nas opções do telemóvel de cada cidadão e o novo parlamento será a cara de tudo isto que construímos sem o sabermos estar a fazer. De repente, vamos todos olhar para as bancadas de São Bento e ver que aqueles que lá estão não são os mais bem preparados, os mais conhecedores, os mais reconhecidos. Mas, para enorme infelicidade de quem votou na amálgama chegana, também não serão pessoas como eles, com baixos salários, com dificuldades na vida, com a pressão das contas, dos filhos, do presente e do futuro a acorrentar-lhes os sonhos. Será só mais um grupo de oportunistas, em tudo semelhantes a tantos outros que já lá vimos passar.
Não vejo grande produtividade em buscar culpados. O PS e a AD sentiram na pele os custos da sua própria mediocridade e perderam ambos na forma como sabem ter enorme responsabilidade na repartição de um espaço de poder que julgavam deter para a eternidade. Quer aqueles que desfizeram a sua maioria absoluta, quer os outros que não conseguiram construir em cima das cinzas do adversário, hesitando sempre entre um discurso tendencialmente ao centro do seu líder e a inquestionável ancianidade de pensamento dos que o rodeavam. IL e BE ficaram presos na maneira de se fazerem cordeiros das forças do poder. O Livre cresceu transitoriamente entre os desiludidos da maioria socialista e a CDU, trazendo a si muitos que perceberam os riscos que esta eleição traria, não foi capaz de materializar essa riqueza de quadros que será decisiva para a resgatar de mais uma quebra.
Vejo como produtivo, sim, enquadrar o passo seguinte. O dia depois da eleição é sempre mais importante do que o dia da votação. Se o discurso mediático trata resultados como uma consequência para a eternidade, a realidade palpável das coisas demonstra-se sempre transitória. Em 2024, reconheçamo-lo, o centro ou a maioria silenciosa, como queiram, votou Chega! Fê-lo pelas mais variadas razões, mas fê-lo porque em 50 anos de vida democrática não avançamos para tornar a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação bens acessíveis, de forma igual, para todos. Não nos espantemos que tantos queiram tomá-los, agora, não pela via da distribuição, mas pela a da destruição. De alguma forma, esse sempre foi o plano do capital, não foi? Fundamental não deixarmos sair de trás do cenário uns quantos que debaixo da capa das promessas se ofereçam a continuar a carregar sobre os mais frágeis entre nós. Fundamental que percebamos que nunca ninguém se perde por ter votado. Perdemo-nos, sim, por desistir de acreditar e lutar. E eu não desisto porque, sei-o bem, não quero morrer devagar.
“Só o teu corpo é que me tenta,
adormeço se me deito com a morte lenta.
Tenho tempo de te melhorar,
eu não quero morrer devagar”